domingo, 15 de novembro de 2009

Conversa de botequim, ou a poesia contra a cultura

Poemolotov, de Diego Medeiros - verbalizando-ou-nao.blogspot.com

Nesta terça-feira recebi pelo correio um número recente do jornal Repórter Leme, em que um velho amigo, Marcos Roberto Zani citava uma frase minha, recuperada de uma conversa de botequim, de um momento difícil em que eu procurava me libertar, entre muitas cervejas, do choque recente das mortes de meus pais. O Marcos é companheiro de longas jornadas literárias e etílicas (não necessariamente nessa ordem) e comigo editou, ainda moleques, no ínicio dos anos 1980 um pasquim poético, O Pêndulo, lá na cidade de Leme, interior de São Paulo. De bate-pronto, mandei-lhe email que reli há pouco. Não há nada desenvolvido ali, mas são questões que julgo importantes, por mais irrelevante que alguém possa achar a poesia nos dias de hoje. O texto não traz propriamente um pensamento articulado, mas idéias soltas, a rodearem algo esquivo. Decidi reproduzir aqui a parte final da mensagem, com uma edição mínima.

”Recebi o jornal que você mandou. Li seu artigo ontem à noite, já bastante tarde. Não me lembro de quase nada da conversa daquela noite. Assim, quanto àquela questão inicial de seu texto- se a poesia ainda tem importância ou se ainda há lugar para a poesia - também não me recordo do que disse.

Todavia, sem dúvida, ainda há lugar para ela. Continua importante também. Do que tenho sérias dúvidas é se a poesia escrita, a dos livros, ainda pode exercer o mesmo papel que teve há algumas décadas, quando escreviam, por exemplo, Drummond, Bandeira, ou quando os concretos lançavam seus manifestos, ou mesmo quando os marginais faziam suas performances mimeográficas. O mundo muda, a poesia muda.

Acho, por exemplo, que a poesia livresca, aquela pensada para figurar na página de um livro, perdeu muitas das funções que tinha. Não quero dizer com isso que ela tenha deixado escapar totalmente o seu papel e o seu lugar. Tanto é que, nas Sibilas, a daqui e a da Espanha, escrevi dizendo o contrário - e não estava mentindo e nem mudei de opinião. Apenas não podemos esperar que essa poesia tenha as mesmas reverberações que talvez tenha tido no passado Ou será que tais reverberações são uma fantasia, mais uma, a nos acalentar com algo que não existiu?

Aliás, esse problema se imbrica com outro, de caráter mais geral. Poesia livresca faz parte de algo que poderíamos chamar de “alta cultura”, e esse rótulo há muito foi questionado. E o poema impresso talvez fosse uma das manifestações mais elitizadas dessa cultura.

Mas a poesia está também na canção popular, na Internet, incorporando novos recursos. Por que chamar um aedo ou trovador de poeta e recusar esse título a um cançonetista contemporâneo? Aliás, creio que ninguém mais pode ter dúvidas seriamente a respeito disso. Há quem diga também que a canção morreu, mas acho que nunca se produziram e ouviram tantas obras desse tipo quanto hoje.

Talvez, no entanto, no que se refere à poesia, a questão realmente importante seja outra. Talvez sempre tenha sido outra. Talvez a poesia possa morar na cultura, de um lado, e na arte, de outro. Talvez a arte seja algo que vem para dar uma porrada na cultura e fazer com que ela se mova, transformando-se. Há arte que fica como incrustação na cultura, sem se diluir nela, um corpo estranho, como uma dissonância necessária. Há arte que muda a cultura e, às vezes, pode se perder nela. Há poesia que é arte - das duas categorias - e poemas que são apenas parte da cultura. Isso pode acontecer no livro, na canção, na Internet, por isso categorizar hoje é tão difícil. Pound tinha razão em parte. Há poetas que são enganadores, há poetas que são diluidores, há poetas que são artesãos, há poetas que são artistas - em qualquer meio. Acho apenas que em alguns desses meios a poesia tende mais a ser arte e em outros a ser cultura. Acho que a poesia hoje - arte e cultura- tem uma ampliação de audiência em relação ao passado, mas diluída em muitos canais. A gente, às vezes, fica procurando a poesia nos mesmos canais de sempre, e ela está ali do lado, sem que seja vista, e depois a gente diz que a poesia sumiu, ficou irrelevante, etc. etc.

Quanta dessa poesia, contudo, é informação nova, pode mudar a cultura, ou pelo menos fazer um remanso, ou escavar um grito nela? Quanto é poesia verdadeiramente e não apenas poema? E como fazer para mudar a cultura, ou para fazer ouvir o silêncio e o brado da poesia em canais cada vez mais dispersos?

Mas tudo isso é papo de boteco internético, que um dia ainda vou organizar.”


Poeta Pobre (Der arme Poet) do pintor e poeta romântico alemão Carl Spitzweg

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

A palavra, ponte e muro


No livro As palavras no tempo – vinte e seis vocábulos da Encyclopédie reescritos para o ano 2000, organizado por Domenico De Masi e Dunia Pepe, leio no verbete “Comunicação e Informação”, escrito por Giorgio De Michelis, algo que me surpreende:

O vocábulo italiano comunicazione deriva do vocábulo latino communicatio e partilha com comunicare uma relação com o latino communis, que deriva de cum munis e significa “que sofre uma autoridade junto”. É interessante notar que a raiz de munis é a mesma de moenia, que significa muros, isto é “sinais dos limites em que se encerra a autoridade”. A etimologia de comunicação correlaciona semanticamente este termo à ação de pôr junto sob uma mesma autoridade, dentro dos mesmos confins, de tornar comum.

Não sei ainda se a etimologia proposta por De Michelis tem realmente raízes históricas ou é fantasiosa. O fato é que propõe uma reflexão interessante. Se a comunicação se dá no espaço da civitas (cidade), e essa é cercada por muros, do outro lado estão os bárbaros (etimologicamente, do grego, aqueles que “falam uma outra língua”, que estão fora da cum munis).

O corrente é (e está certo, é isso mesmo) relacionar a “comunicação” com “comum + ação”, com “colocar em comum”. Comunicar é ligar, estabelecer um “entre” que aproxima, tentar vencer um "entre" rebelde, buscar uma margem que sempre está além. Sempre há algo incomunicável, pois os signos não dão conta do mundo e, se há algo “no meio”, há também distância. Entre o “emissor” e o “receptor”, entre o signo e a coisa - sempre há uma falta.
Todavia, esse achado de cum munis, de moenia, que a comunicação não é só ponte, mas também muro, revela outra brecha, um avesso, um inconsciente da palavra, que está além dessas formas de in-comunicação mais notadas, mais mediadas. Uma brecha em relação ao outro, uma outra brecha em relação ao próprio vazio, uma brecha da brecha, que fala menos de uma impossibilidade de preencher, de saltar, e mais das impossibilidades criadas pelas escolhas presentes em todos atos comunicativos.

O mundo da comunicação é uma pletora de compossíveis que não podem estar todos atualizados em cada ato. Se falo com você, excluo aquele que não conhece a nossa língua. Se gesticulo, excluo aquele que é cego. Se grito, excluo aquele que é surdo. Se toco, excluo aquele que está longe. Se transmito um programa de TV para todos os televisores de um lugar em que, em todas as casas, em todos os cômodos, há um aparelho ligado, sempre alguém estará distraído, fazendo amor, ou preocupado com as contas a pagar, ou fora desse lugar.
Todo gesto de contato é também um gesto de exclusão, por mais que queiramos diferente. É pelo menos um gesto que não pode incluir todos e que carrega escolhas, intencionais ou não. Uma escolha é sempre de Sofia, deixa algo de fora. Do outro lado, separado de nós que nos comunicamos, sempre haverá um bárbaro. E bárbaro aqui não é somente aquele que quer entrar no espaço da civitas e que eventualmente queremos deixar do outro lado, mas também aquele que esquecemos, aquele de quem não sabemos, aquele que não sabe de nós, aquele que pouco está se lixando para o espaço que circunscrevemos, é o próprio espaço que queremos saltar.
Uma ponte entre duas margens exclui, pelo menos, o rio - e não adianta dizer que ele é justamente o obstáculo a ser ultrapassado. Por ele podemos, por exemplo, navegar. E se for mero abismo quantos segredos esconderá? Aos muros concretos, sucedem-se outros, que nem sempre chegam a ser imaginários, tão ou mais reais quanto os primeiros.
Uma teoria da comunicação consequente não há de reconhecer isso? É preciso fazê-lo, como um ato de integridade – e um primeiro passo para caminhar sobre o moenia, fio de uma eterna navalha.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Viva Leminski!


Há vinte anos, partiu para outras lutas o samurai que sabia fazer poesia da vida.

Quem puder esteja lá. É preciso manter vivos os heróis de verdade.

domingo, 11 de outubro de 2009

Quando fumar é um ato trágico - Sobre "Estive em Lisboa e Lembrei de Você", de Luiz Ruffato

"(...) alcancei a beira do Tejo, uma ignorância tanta água, perto dele o infeliz do Pomba parece corguinho, comprei um cartão-postal pra exibir praquele povo incréu de Cataguases, mas às vezes fico pensando, acho que não vou mostrar não, pra que humilhar o pobre do nosso rio? " - Estive em Lisboa e lembrei de você - p. 43

Luiz Ruffato é um escritor que nos tem presenteado com livros gostosos de ler, inventivos sem ser herméticos, até quando ousam uma construção menos convencional, como Eles eram muito cavalos. Sem cair em repetições, soube construir uma marca muito própria. E esses méritos vêm se confirmar no recente Estive em Lisboa e lembrei de você, integrante dos “Amores Expressos”, da Companhia das Letras.

O título da série propõe histórias de amor. Mas Ruffato, indócil, burlou o pedido e entregou uma ficção em que os amores são coadjuvantes. O motivo principal, no caso, é a jornada de um homem comum, desadequado do mundo, como todos os homens o são, mais ou menos.

A “Nota” que precede as duas partes em que se divide Estive em Lisboa e lembrei de você diz que o livro é

“(...) o depoimento, minimimamente editado, de Sérgio de Souza Sampaio, nascido em Cataguases (MG) em 7 de agosto de 1969, gravado em quatro sessões, nas tardes de sábado dos dias 9, 16, 23 e 30 de julho de 2005, nas dependências do Solar dos Galegos, localizado no alto das escadinhas da Calçada do Duque, zona histórica de Lisboa. A Paulo Nogueira, que me apresentou a Serginho em Portugal, e a Gilmar Santana, que o conheceu no Brasil, oferto este livro ”

Ou seja, o que Ruffato propõe é uma trama com ares de verdade, endereço preciso, gravada em datas bem marcadas, com um personagem pretensamente real, cuja existência poderia ser atestada por determinadas pessoas. A narrativa de um pobre-diabo que, bem menos que herói, é vítima de acontecimentos que não pode compreender em sua inteireza. Alguém que, logo na apresentação do livro, logo deixa de ser identificado com o formal “Sérgio de Souza Sampaio”, para se transformar num “Serginho” que - considerando uma etimologia que pode ser falsa, mas é muito popular - já traz inscrita em seu nome a condição de servo dos acontecimentos, agravada ainda por um diminutivo que, antes de ser carinhoso, expressa a pequenez daqueles que nos são inferiores, que têm a nossa simpatia justamente por causa disso.

Como registro “minimamente editado” de um depoimento, o texto somente poderia ser marcado por forte oralidade. Oralidade literária, seja bem dito, tão diferente e tão parecida com a fala de alguém, que acaba por se revestir daquela verdade irretorquível do que não existe no mundo. A criação dessa fala muito própria, em que o regional surge mais do ritmo e da sintaxe do que léxico, ao mesmo tempo tão realística e tão poética, é, sem sombra de dúvida, a marca de um escritor de talento – ainda mais porque ela não se presta apenas à pseudocaptura de um fragmento do mundo, mas, como tentarei mostrar a seguir, empenha-se em mostrar ao mesmo tempo, a metamorfose desejada por Serginho e a impossibilidade de que ela aconteça.

Em seu depoimento, a fala de Serginho desenha-se como um fluxo de consciência que, apesar de inúmeros volteios e desvios, caminha inexoravelmente para um final anunciado logo nas primeiras linhas do livro – isto é, o momento comezinho e enorme em que a personagem volta a fumar.

A narrativa estrutura-se, de certo modo, em torno desse ato. Isso se evidencia não só por ela se dividir em duas partes que trazem o fumo em seu título – “Como parei de fumar” e “Como voltei a fumar” –, mas porque as atitudes anunciadas por esses títulos são reveladoras da psicologia da personagem e marcam momentos capitais de sua trajetória.

Na primeira dessas partes, Serginho está em sua cidade natal, Cataguazes, na Zona da Mata mineira. A personagem é um homem ingênuo, um gauche, de poucos recursos, financeiros ou intelectuais, sem muita consciência da mediocridade, tanto da própria quanto da realidade circundante. Carregado pelos acontecimentos, vive pequenos amores e percalços, joga peladas de fim de semana, embriaga-se pelos botecos da cidade, casa-se por causa de uma gravidez indesejada e sob a ameaça de um trabuco com um moça “de ideia fraca”, que acaba internada, perde o filho para os parentes dela, é explorado por familiares seus e da mulher, até que acaba por ser despedido do emprego numa fábrica local.

Daí, meio sem querer, surge a idéia de buscar fortuna em Portugal, como poderia aparecer outra qualquer. A partida de Serginho contudo, não é propriamente um ato de vontade: depois de falar da viagem como uma bravata, ele vai-se deixando levar pelos acontecimentos, empurrado pelas pessoas, até que, um pouco para não fazer feio, um pouco para fugir dos problemas, um pouco porque tomado de uma ingênua esperança, encontra-se em um ônibus para o Rio de Janeiro, onde deverá pegar o avião para Lisboa.

Trata-se, portanto, de uma partida que não é uma decisão, é um deixar-se levar - como quando Serginho decidira antes parar de fumar, convencido por um colega de peladas, médico bem-intencionado, tão interessado em mostrar a eficácia de seu método de “cura” quanto nos pulmões do amigo. Deixar o cigarro, depois de três tentativas frustradas, não deixa de ser uma prova de que é possível vencer. Então, por que não enriquecer num Portugal, que embora não possa ser nem uma miragem, porque não imaginado de modo pleno, pode ser sonhado quase abstratamente, como um lugar outro em que é possível se fazer grande?

Enquanto conta esses incidentes, a prosa de Ruffato cria um Serginho que se desenha numa linguagem cheia de humor e de mineirice, numa fala que, se a narrativa se passasse toda em Minas, poderia levar alguém a classificá-la de regionalista. Mas, tão logo o rapaz chega à Lisboa, palavras do português de além-mar, ou melhor, dos portugueses de muitos mares, de Portugal e da África, começam a se misturar ao seu discurso, numa transformação linguística que, no entanto, não se completa.

É interessante a transcriação que Ruffato faz do suposto depoimento de sua personagem. O que deveria ser fala, ao migrar para a escrita – ou a surgir da escrita que cria uma fala - deixa-se marcar graficamente por variações de letras que instauram uma outra mensagem, paralela à que se enuncia verbalmente.

Assim, na primeira parte do livro, às vezes as palavras vêm grafadas em itálico, como um signo de alteridade, um efeito que visa a marcar uma espécie de “fala do outro”, ainda que ditas sempre por Serginho - palavras terceiras que chegam ao texto depois de uma primeira mediação, num efeito irônico que surge, muitas vezes, antes do escriba que do fictício narrador oral. Na maior parte dos exemplos, são aquelas que usualmente não deveriam integrar o vocabulário de Serginho, que representam a fala de outros personagens ou que desvelem sentidos outros, ênfases tendenciosas. Eis alguns exemplos:

“Ele conclamou novamente a tal Lazinha, que devia de ser a esposa, fazia questão de apresentar o colega de futebol, pra certificar que tratava com pessoas dignas, honestas (...) anunciando entusiasmado que eu só saía dali carregado, e serviu preliminarmente, uma dose de cachaça, da-roça, que engoli sem detença”.

“Mas foi parar de fumar, e as coisas degringolaram na minha vida, e só não desisti daquela empreitada pra não desapontar o doutor Fernando, que adotou uma felicidade irradiante, me expondo pra deus-e-o-mundo como prova inconteste do seu método revolucionário, “Parece indiscutível que a associação de um anticonvulsionante a um antidepressivo, mais um dosamento retrógrado de nicotina”, claro que considerando a pertinácia do paciente (no caso, eu), ´Resulta altamente favorável em casos de abstinência de tabaco (...)´” (p. 21)

“Decorre que sagrou esta uma melancólica união desde a raiz, festança desproporcionada no Clube Aexas pra não sei quantas cabeças, por gosto dos Carvalhos, gente de comer taioba e arrotar pernil, multidão reclamosa, a cerveja e o guaraná, quentes; os espetinhos de churrasco, passados; a maionese, desandada; a música, alta (pros idosos), cafona (pra mocidade); as balas-de-coco, o bolo, minguados (o povo avançou, sem condição sequer pro retrato oficial, mãos sobrepostas na faca); o local, afastado, a noiva, xexelenta (no parecer dos meus); o noivo, otário (no juízo de todos)” (p. 22-23)


Diferentes dicções, ênfases e intenções são marcadas dessa maneira. Cada itálico, no caso, pode fazer uma palavra falar mais do que poderia dizer à primeira vista. Esse tipo de jogo continua em Lisboa. Mas lá, ao lado do itálico, aparece o negrito, para registrar os termos lusos e dos imigrantes africanos, que vêm se juntar à fala de Serginho.

Recordo-me que, numa aula, Arthur Nestroviski alertou ao alunos que o negrito, como recurso gráfico, não deveria jamais ser usado. "Lembrem-se, só há uma regra quanto ao uso do negrito: ele simplesmente não existe" – disse ele. O negrito grita, suja a página, instaura um tipo de desordem visual. O negrito berra uma diferença. Os muitos idiomatismos portugueses e africanos, no texto de Ruffato, criam uma sensação de estranheza. Eles entram no discurso de Serginho, mas ao mesmo tempo estão fora, compõem a fala, mas nela aparecem como incrustações.

É o que se pode notar, por exemplo, no trecho seguinte, em que Serginho trata de Sheila, a brasileira por quem se apaixona. Notar, no excerto, o uso do itálico para destacar um uso específico da palavra “decente” e os lusitanismos que se acotevam entre o mineirês do narrador

“(...) fantasiava um emprego decente numa daquelas lojas da Baixa-Chiado, rua Augusta, rua do Ouro, rua da Prata, rua do Carmo, rua Garrett, ou da Avenida da Liberdade, gastava tardes rondando as montras, cobiçando o trabalho das empregadas de loja, invejando as europeias esverdeadas de tão brancas, a japonesada só-sorrisos, arrastando sacolas entupidas de trens caríssimos, mas nem arriscava, o passaporte irregular, visto de turista, se pega, deportavam ela, sem ai nem ui, botavam ela num avião e, adeusinho, nunca mais, além do quê, parecia que estava escrito na testa Prostituta, onde entrava tratavam ela mal, aos chutos e pontapés, como se portasse sida (...)” (p. 67)

Ocorrências que se repetem na passagem seguinte, em que, todavia, o lusitanismo "pastel" (mais próximo, muitas vezes, do nosso bolinho) vem escrito em itálico:

“Lisboa cheira sardinha no calor e castanha assada no frio, descobri isso revirando a cidade de cabeça-pra-baixo, de metro, de eléctrico, de autocarro, de comboio, de a-pé, sozinho ou ladeado pela Sheila. Com ela de-guia, visitamos um monte de sítios bestiais, o Castelo de São Jorge, o Elevador de Santa Justa, Belém (pra comer pastel), o Padrão dos Descobrimentos e o Aquário, na estação Oriente, um negócio onde o sujeito enlabirinta em um nunca-acabar de peixe, uns baitas de tubarões e arraias, e outros, bostinhas de nada, mais parecendo bando de passarinho avoando em-dentro dágua, um troço impressionante, fora a imundice de estrela-do-mar, ouriço-do-mar, medusa etc., e a geladeira dos pinguins giras e a piscina das lontras exibidas, mas o mais importante mesmo foi andar no teleférico (...)” (p.67-68)

É uma alteridade diferente daquela que se corporifica no uso do itálico, ainda mais estranha porque, nas vezes em que Serginho recorre a um inglês macarrônico, o que diz grafa-se normalmente.

“(...) não é pra me gabar não mas em dois tempos eu já encostava naqueles brancalhões e desatava o meu inglês, Rei ser, Rei mádam, Ria chípe fude, gude fude, uaine, fiche, mite, têm-quíu (...)” (p. 58)

Touché. Os lusitanismos entram no discurso porque Serginho quer integração, quer ser aceito por aquele mundo novo. Mas a alteridade está ali, instransponível. Assim como ele não consegue fazer parte de Lisboa, as palavras da cidade aparecem como estrangeiras em sua fala.

Todavia, não se trata de um problema de Portugal. Seria muito simples traduzir o fracasso do forasteiro vindo de Cataguases por um viés sociológico, falar da dificuldade de integração – real - dos migrantes pobres num país da Europa que, momentaneamente, surge como um novo Eldorado. Não que essa leitura pudesse estar errada. Assim como estaria certa uma outra que falasse da sensação de desterro de qualquer migrante, em qualquer parte do mundo, anunciada de certa forma pela transcrição de um poema de Miguel Torga que serve de epígrafe para o livro. Leituras como essas são possíveis e encontram amparo no texto, em que muitas passagens anunciam o fracasso daquele que vai se aventurar em países distantes. Por exemplo, quando o ônibus está para sair de Cataguases, levando o pobre Serginho, explorador sem jeito de mundos alheios, surge, qual um outro Velho do Restelo, uma “senhora portuguesa (...), franzina e enfermiça na cadeira-de-rodas(...)”, a qual, trazida à presença do novo migrante, aos prantos, num aviso não ouvido, anuncia que “Perdi a esperança de voltar”.

Mas o estranhamento de Serginho é outro, ele já era um desterrado em Cataguazes e o seria também se migrasse para Rio, São Paulo ou Nova Iorque. Os amores expressíssimos vividos pela personagem dão conta de uma espécie de romantismo que não sabe o que é romantismo, fora de época e lugar, quaisquer épocas e lugares. A inocência e inadequação de um homem que casa com uma moça “de ideia fraca” no interior de Minas, que sonha desembarcar casado em Cataguases com uma prostituta “alemoa, mais comprida que eu, cabelo afogueado, olho azul-azul, corpo leitoso transbordando da roupa brilhante” e se desconcerta quando ela não goza com ele, que se apaixona por outra prostituta, uma brasileira, desterrada também, e propõe a ela um impossível casamento, que nunca parece dar dimensão ao que realmente acontece – tais inocência e inadequação seriam a mesma em qualquer canto do planeta.

Seria estragar a leitura contar em detalhes como acaba a aventura de Serginho, esse Ulisses às avessas, que se entregou às sereias sem nem mesmo ouvir a sua música. Mas, pelo dito aqui, já dá para imaginar porque ele volta a fumar. Se quando parou, começaram as desgraças de sua vida, acender o cigarro de novo pode significar derrota e esperança ao mesmo tempo. Gesto simples, mas que, no caso, carrega-se de uma carga trágica. Tragédia moderna, em que não há heroi, mas apenas vítimas, sem o gesto que possa ofender o ethos, sem a hamartia aristotélica das tragédias gregas, tragédia comezinha em que o destino não é um agente cósmico, mas principalmente o resultado de um desencontro entre os entes. Porque, no caso, até os gestos são programados pela falta de jeito - do homem em lidar com o mundo e do mundo em lidar com o homem.
Lisboa - Ponte 25 de abril

Espelho sem aço


Espelho sem aço -Waltércio Caldas, 1997
Aço inoxidável e granito preto – 350 cm X 450 cm X 500 cm

Jorge Coli, sem nenhum favor um dos melhores críticos de Arte da atualidade, hoje na Folha de S. Paulo, abrindo artigo sobre a obra “A Coleção”, do artista Pazé, exposta na Galeria Triângulo, em São Paulo:

“Talvez alguém se lembre da expressão antiga. Espelho sem aço refere-se a alguma coisa que não reflete, que bloqueia a vista. `Saia da frente, espelho sem aço`, costumava-se dizer para alguém atrapalhando o olhar. Sabe-se lá por que aço. Talvez alguma palavra técnica.”

Essa expressão era uma das preferidas de meu pai, quando eu era menino. Usava-a geralmente quando estava a ver TV, e eu entrava na sua frente. Outras vezes dizia alternativamente: "Sai da frente, filho de vidraceiro!". De vez em quando, ouvia outras pessoas usando-as, mas talvez fosse mais raro, não sei. Depois, com o tempo, sumiu de meus ouvidos, como tantas outras, caídas em desuso. Quando a gente as ouve por aí, soam como resíduos do passado, deslocadas, ou como madeleines sonoras.

Eu sempre estranhava a frase. O “aço” do espelho, na linguagem popular, é o revestimento metálico detrás do vidro, que lhe dá suas propriedades reflexivas. A menos que houvesse uma nota irônica na frase, portanto, mais do que de opacidade, ela reclamava de um defeito nessa suposta capacidade especular. Se houvesse aço no espelho, quem falava não veria o objeto do outro lado, mas a si mesmo. Parecia-me, assim, que a admoestação, antes de se voltar para um impedimento da visão, era signo de um ego insatisfeito com a interrupção dessa forma de autocontemplação que muitas vezes encontramos nos objetos mais familiares e apaziguadores. Eu sentia isso confusamente, como menino que não conseguia colocar em palavras e nem sequer em pensamento algo que se estranhava numa esfera muito íntima e crespuscular. Sementes de pensamento que precisavam de uma linguagem ainda inexistente para se formular de verdade.

Talvez esses quase-pensamentos não passassem de fantasmas. Talvez eu estivesse, esteja, errado. Afinal, a frase-irmã, sobre o filho de vidraceiro é claramente irônica. Talvez as duas sejam realmente muito parecidas em sua construção. Mas as palavras não são unívocas, vibram em polissemias insuspeitas. Elas têm sombras e desvãos. Quase sempre queremos dizer duas ou muitas coisas ao mesmo tempo. Se escolhemos uma delas entre várias, quase nunca é de graça. As palavras trazem muitas intenções, muitas tensões, que nem sabemos. Elas são perigosas.

Pazé - A Coleção solangeviana.blogspot.com/2009/09/paze-em-col...

domingo, 4 de outubro de 2009

O meu é menor que o seu. Ou, pode haver poesia visual onde o olho não chega?

Reprodução de Infinitozinho, nanopoema de Julio Manzi
Em março deste ano, foi criado aquele que alguns chamam de o “primeiro nanopoema do Brasil”.

Julio Manzi, seu autor, é o pseudônimo artístico de Giuliano Tosin, aluno de doutorado do Instituto de Artes da Unicamp, onde desenvolve tese com o título Transcriações: reinventando poemas em meios eletrônicos.

Não é a primeira experiência com nanoescritura (também chamada de nanowriting) no mundo. Além de uma Bíblia que foi convertida por cientistas israelenses ao tamanho de um cristal de açucar, por meio de um programa de computador chamado Technion, é possível lembrar pelo menos um caso mais próximo da experiência brasileira, no qual um poema "comentava" a pequenez do suporte, um hai-kai gerado na Universidade Cardiff, Reino Unido, em 2007 - na verdade uma brincadeira quase infantil e um pouco egóica, visivelmente elaborada apenas para ilustrar o potencial da tecnologia, conforme se pode ver na reprodução a seguir.

O nanopoema da Universidade de Cardiff

Fonte: www.cardiff.ac.uk/news/articles/royal-society...

Página da nanobíblia israelense

No caso brasileiro, bem mais consequente, o quase oxímoro “infinitozinho”, retirado de um poema de Arnaldo Antunes, foi esculpido em um nanofio de fosfeto de índio bombardeado por um feixe de eletrons. O experimento aconteceu no Centro de Nanociência e Nanotecnologia César Lattes, onde Luiz Henrique Tizei, doutorando no Instituto de Física, realizou a gravação no nanofio desenvolvido pelas pesquisadoras Thalita Chiaramonte e Mônica Cotta.

O poema de Arnaldo Antunes já recebera várias versões transsemióticas do próprio autor. Primeiro, foi uma das criações intituladas Caligrafias, na passagem dos anos 1980 para os anos 1990. Em 1999, reapareceu na forma de instalação com cerca de seis metros de altura, com letras de alumínio pintadas, durante a II Bienal de Artes Visuais do Mercosul, em Porto Alegre. Em seguida, encarnou-se num totem de 125 cm, integrante da exposição Múltiplos, inaugurada em 14/02/2004, na galeria Laura Marsiaj Arte Contemporânea, com as letras agora em aço-carbono.

Na sua transcriação por Julio Manzi, a palavra foi esculpida num intervalo de 35 por 440 nanômetros. Para se ter uma idéia do que isso significa, um nanômetro é um milionésimo de milímetro, algo que caminha, realmente, para o muito, muito pequeno – para o “infinitozinho” escrito no fio.

Por isso, o poema somente pode ser lido a partir de imagens geradas por um sofisticado microscópio eletrônico (talvez, o mais correto fosse falar, no caso, em. nanoscópio...). O próprio autor, todavia, anunciou que inicialmente elas serão divulgadas impressas, inclusive na forma de banners, como um poema-cartaz .

O trabalho foi noticiado principalmente como um feito científico em cadernos de jornais e páginas da Internet voltados para ciência e tecnologia. O resultado propriamente estético ficou, desse modo, obscurecido. Aqui, contudo, pretende-se refletir um pouco sobre ele, pois, se infinitozinho é uma inovação quanto ao uso da tecnologia, cabe perguntar, por outro lado, em que bases ele se constitui enquanto obra poética.

Nesse sentido, é fácil reconhecer que o experimento filia-se a uma corrente que, no Brasil, vai do concretismo dos anos 50 à infopoesia mais recente, passando por diversas formas de poesia visual, desde aquelas corporificadas na página impressa até as que, depois, apropriaram-se criativamente de novas tecnologias, como o vídeo, a holografia e o computador.

Nesse universo, desde cedo disseminaram-se as traduções de poemas de uma mídia para outra. Haroldo de Campos foi quem difundiu o termo “transcriação” para falar da tradução poética entre diferentes espaços semióticos, seja essa passagem realizada entre línguas seja entra suportes técnicos distintos. Assim, a operação de tradução, mais que o transporte de sentido de entre duas linguagens, na busca de uma impossível correspondência de signos entre uma e outra, exigiria recriar na linguagem de destino estruturas materiais existentes na de origem, como aliterações, assonâncias, rimas, visualidades. Essa proposta teve Julio Plaza como um dos seus principais cultivadores e teóricos, explorando tecnologias nascentes, algumas das quais já obsoletas nos dias de hoje, como o videotexto. Plaza divulgou o termo “tradução inter-semiótica” para designar as migrações poéticas entre diferentes mídias, definindo-a como “pensamento em signos”. Sob essa perspectiva, seja numa outra língua ou numa outra tecnologia, não há como simplesmente repetir os pensamentos de origem. Um sistema sígnico é historicamente produzido. Traduzir é recontextualizar culturalmente as formas artísticas marcadas por diferentes momentos, de modo que o projeto tradutor é sempre um “projeto constelativo entre diferentes presentes”.

Disso, podem-se tirar várias conclusões, dentre as quais vou destacar algumas. A primeira é que toda tradução é também diálogo entre os próprios meios expressivos e códigos em que as obras se inscrevem, que têm dessa forma a sua relatividade desvelada. A segunda é que, apesar de radicalmente embebida de seu sistema sígnico, uma obra pode sobreviver-lhe nos diálogos que esse sistema entabula com outros por meio da tradução, de tal sorte que se pode mesmo dizer que uma das possíveis provas de fogo da relevância de um poema é ele ainda ser capaz de continuar seduzindo e gerando sentidos mesmo depois que o sistema signico de origem se torne obsoleto - como o videotexto de Plaza, ou o grego de Homero.

Se cada poema, todavia, está fortemente ligado ao meio de origem, o que garante então a possibilidade de transcriá-lo num outro? Como conciliar a materialidade poética com a transitoriedade e historicidade dos suportes quando se trata do fenômeno da tradução? Se um determinado poema depende solidamente de sua mídia de origem, como recriá-lo em outra?

No caso da transcriação de Julio Manzi, pode-se dizer que essa possibilidade foi garantida pelo caráter visual dos poemas de origem e destino, ancorados na exploração das potencialidades espaciais e temporais trazidas ao olho pelas plataformas utilizadas.

A exploração poética da visualidade existe desde os tempos mais remotos, mas é certamente apenas no século XX que ela ganhou força, armando-se muitas vezes de sofisticados arcabouços teóricos e espraiando-se por diferentes estéticas e movimentos. Todo poema escrito não deixa de ser "visual", mas esse adjetivo é usado de forma particular e categorizadora sempre que seus elementos gráficos (espaçamento na página ou na tela, design das letras, cores, entre outros) ajudam a compor a mensagem ou são mesmo o principal dela. A geração de sentidos, nesses casos, é possível de muitos muitos modos, porém, de uma forma bastante simplificada, pode-se dizer que as duas principais vertentes, imbrincadas em boa parte dos casos, amparam-se em formas lógicas que podem ser chamadas de ideogrâmica e pictogrâmica.

A composição ideogrâmica, no Brasil, é herdeira direta da poesia concreta, em que a palavra torna-se a menor unidade do sentido e passa a gerar interpretantes pelo seu ordenamento no espaço gráfico, numa forma de sintaxe relacional assimilada ao funcionamento montagístico do ideograma chinês segundo as teses de Fenollosa e Pound. De acordo com essa concepção, o ideograma instaura sentidos a partir do relacionamento paratático entre formas, num procedimento de síntese, em contraposição aos movimentos hipotáticos e analíticos que dominam a sintaxe e a escrita ocidentais. Essas relações podem-se configurar tanto pela apreensão simultânea dos elementos quanto pela sucessão de quadros, como acontece também com a montagem cinematográfica (é o caso, por exemplo, de LIFE, de Décio Pignatari). Nesses poemas, o choque de imagens, concomitantes ou sucessivas, é capaz de gerar tanto uma idéia quanto uma simples qualidade estética não verbalizável, numa espécie de paralelo poético de certo tipo de pintura abstrata (casos daquelas criações que Philadelpho Menezes classificou sob a rubrica geral de “poemas colagem”, em seu livro Poética e visualidade).

Foi desse modo, ao explorar as potencialidades semânticas do espaço e da sucessão de planos, que a poesia visual que, num primeiro momento, relacionava-se com a página, passou depois a explorar espaços tridimensionais e as possibilidades temporais de montagem proporcionadas pelo vídeo e pelo hipertexto. Houve casos mesmo em que chegou a prescindir da própria palavra, buscando a geração de sentidos a partir do simples relacionamento entre formas que, do universo verbal, retiraram apenas os movimentos lógicos básicos, configurados em operações sintáticas como as dos chamados “poemas processo”.

A montagem, nesse sentido, apesar de depender diretamente das características visuais, tem uma clara índole construtivista, pouco ou nada dependendo da figuratividade. Esse não é o caso daquelas composições chamadas aqui de pictográficas. Um pictograma é uma representação gráfica de um objeto que o significa por semelhança fisionômica, por meio da estilização de seus traços básicos. A semelhança de forma entre a imagem gráfica do poema e a idéia que ele veicula aparecia desde épocas remotas e chegou a diversas manifestações contemporâneas, passando pelos caligramas de Apolinaire, apenas para lembrar um exemplo muito conhecido. Na poesia brasileira, são o casos, por exemplo de OVONOVELO, de Augusto de Campos, ou do poema BOMBA, também de Augusto, em que as palavras explodem na página, em sua versão original, ou em vídeo na sua tradução intermidiática posterior, que incorporou movimento e som.

Vale dizer que todas esses experimentos desenvolveram-se a partir de uma perspectiva vanguardista de busca do novo, amparada tanto na reciclagem de formas e materiais do passado, quanto na experimentação com linguagens e materiais novos. O primeiro caso explica, em parte, a intensa atividade de tradução dos concretistas, empenhados em constituir um novo paiudeuma. O segundo materializa-se na exploração das novas tecnologias.

O poema de Arnaldo Antunes surge quase como um ícone dessas passagens, na medida em que originalmente foi concebido para o papel, para depois migrar para o mundo tridimensional e reencarnar-se agora, de forma inédita, num novo material, como é o caso do nanofio.

Tanto o original de Arnaldo Antunes quanto a sua tradução por Julio Manzi são obras organizadas a partir das principais técnicas do poema visual, apesar de o segundo somente poder ser visto de forma indireta, por escapar à capacidade do olho humano. Todavia, entre um e outro – e não poderia ser diferente – há deslocamentos, oriundos não apenas das difereças entre os meios empregados, mas também entre os próprios gestos que os conformam.

No caso da instalação apresentada por Antunes em Porto Alegre, há uma espécie de jogo irônico entre o significado de “infinitozinho” e as proporções da instalação. A idéia de infinito grafa-se numa estrutura finita, apesar de grandes dimensões, com o diminutivo a chocar-se com os muitos metros em que se estende o poema. O infinito torna-se “zinho” porque paradoxalmente limitado, ainda que grande. Um infinito de seis metros, afinal, só pode ser anão... E poderia um poeta, um homem, pretender criar uma representação do infinito sem sufixá-la com algo indicativo de sua (dele, homem, dela, representação) pequenez?

No poema transcriado em nanofio, a extrema pequenez do suporte, não assimilável pelo olho nu, como que tenta iconizar o sentido veiculado pela palavra que nele se esculpe. O novo poema, assim, mais do que tradução, faz-se comentário sobre aquele de origem. O que se transcria, de certo modo, é a capacidade de o tamanho do suporte dialogar com a palavra que nele se inscreve, mas agora dotada – e poderia ser diferente? – de um novo sentido. Perde-se ironia, mas procura-se acrescentar uma impossível adequação entre forma e conteúdo, pois, se o muito pequeno não chega ser o infinitamente pequeno, sem dúvida faz jus ao diminutivo.

O suporte faz-se comentário da mensagem e vice-versa, numa espécie de trocadilho visual - ou indiretamente visual, pois, no caso, como já mencionado, o olho não tem como captar sem alguma prótese a pequenez da palavra. Há no poema, desse modo, um reforço semântico e uma sintaxe imagética que são muito próprias daquela poesia visual aqui chamada de pictogrâmica.

A primeira vez que vi as reproduções do infinitozinho de Manzi lembrei-me de um poema trazido a uma aula, há muitos anos, pelo já falecido professor Philadelpho Menezes, ele mesmo um cultor e teórico da poesia visual. Chamava-se Crush e não passava de uma latinha esmagada do refrigerante de mesmo nome, bastante conhecido na década de 1970. Não lembro o nome do poeta, pesquisei na Internet e não consegui localizá-lo, mas de qualquer modo a citação é válida. O significado da palavra crush (em inglês, “esmagar”, “amassar”, “quebrar”) foi iconizado no próprio suporte. Não deixa de ser o mesmo procecimento adotado por Júlio Manzi na inscrição no nanofio, com a diferença apenas que, no primeiro caso, de certo modo, “adequou-se” o suporte ao vocábulo nele escrito e, no segundo, buscou-se, num outro poema, uma palavra adequada, para escrevê-la em um novo meio tecnológico.

No caso de Crush, além de uma leitura mais imediata, pode-se interpretar uma crítica aos signos da sociedade de consumo, personificados no esmagamento de uma marca conhecida, que ganha um novo significado ao ser inserida num outro circuito significante. O que é possível ler em infinitozinho, além da possível loa ao poder técnológico vislumbrada pelos órgãos de comunicação que noticiaram o feito brazuca?

Importa reconhecer o figurativismo presente em ambos os procedimentos, o de Manzi e o do autor de Crush. Nos dois há semelhança entre suporte e mensagem, entre signo e objeto. No caso de infinitozinho, cabe perguntar que interpretantes ele pode gerar do ponto de vista de uma reflexão estética que vá além da simples ilusão fisionômica.

Deve-se reconhecer que, no trajeto da poesia visual, determinados procedimentos acabaram por revestir-se de automatismo, a ponto de se transformarem quase numa fôrma. A palavra “serpente” escrita com sinais alongados e coleantes ao longo da página seria um poema? E se grafarmos GRANDÃO, de algum modo, com letras colossais, numa das faces do Burj Dubai, o maior edifício do mundo? E se, por outro lado, escrevermos “pequenininho” no mesmo lugar, usando notas de um dólar fora de circulação?

Um poema deve buscar mais do que tão somente a adequação física da roupagem ao conteúdo. Para lembrar Pound, ele tem de ser forma carregada de significado – ou, em outras palavras, de possíveis sentidos, possibilidades de leitura. Se a arte é ícone, essa palavra não deve ser compreendida apenas como representação por semelhança, mas, peirceanamente, como qualidade de sentimento, capacidade de indeterminação e de inseminação. O jogo icônico pode revestir-se de múltiplos simbolismos, alimentando-se inclusive de notas irônicas, como no caso da palavra LIXO inscrita no LUXO, da obra de Pignatari ou na inadequação entre o tamanho da instalação e o significado mais imediato de infinitozinho no poema-instalação de Arnaldo Antunes.

Desse modo, o que mais poderia dizer o infinitozinho de Júlio Manzi?

Como já lembrado, o poema, ao buscar um efeito figurativo direto, inscreve-se numa certa linhagem da poesia visual. Entretanto, trata-se de uma obra que não pode ser vista – pelo menos não diretamente -, motivo por que o próprio autor fala em divulgá-lo por meio de banners ou cartazes. Contudo, ao contemplar essas representaçoes, as pessoas estarão vendo o poema? O próprio microscópio eletrônico que o filmou é uma mediação complexa que, ao trazê-lo perante o olhar do observador, desveste-o de sua característica principal, a pequenez quase infinita.

Se pensarmos numa tipologia das artes de acordo com a sua reprodutibilidade, poderíamos dividi-las instrumentalmente em três grupos, cientes de que as fronteiras entre cada um deles são bem mais difusas do que poderiam parecer à primeira vista.

O primeiro se compõe daquelas que se corporificam num exemplar único. Pense-se, nesse sentido, numa estátua de mármore ou num quadro a óleo.Ao contrário do que poderia dizer um benjaminiano superficial, mesmo em nossa época de quase onipresentes meios de reprodução, não dá para confundir a Monalisa com a sua reprodução em uma enciclopédia – e mesmo uma cópia muita bem feia por um expert não é o original, tem de se declarar como cópia ou será uma fraude. Podemos dizer que isso é um mero reflexo da sociedade capitalista, de uma aura autoral que se converte em mercadoria, mas não mudará o fato de que se trata de obra única, embora passível, até certo ponto, de reprodução.

O segundo grupo constitue-se de obras de reprodução intencionalmente limitada. São os casos dos bronzes e das gravuras. Trata-se, no caso, de uma restrição mais legal do que propriamente técnica, visando a preservar a aura (e o valor de mercado) do original. Ninguém pensa em colocar limites, por exemplo, no número de cópias a serem produzidas por injeção de plástico a partir de um molde metálico, fruto de design industrial, como brinquedos, vasilhas para microondas, dentre outros utensílios da vida cotidiana contemporâne. Todavia, um bronze produzido além do limite legal, ainda que perfeito, será considerado sempre uma cópia. Nesse caso, como no anterior, escassez de exemplares e valor artístico se encontram para se converterem em valor econômico.

O terceiro é o daquelas que vivem em todas as suas cópias, independentemente às vezes até do meio técnico utilizado. Um poema como José de Drummond é sempre reconhecido como o mesmo, reproduzido que seja num livro de capa dura, numa edição de bolso, na tela do computador, num CD com a voz de um astro da TV ou num LP, lido pelo próprio poeta. Podemos ter um atitude mais reverencial ao ouvir o próprio Drummond declamar a sua obra, podemos talvez cuidar melhor da reprodução num volume caro do que da outra, num livrinho de bolso – mas jamais teremos dúvida de que se trata, no fundo, do mesmo poema e que nenhum de seus avatares é mais ou menos original do que o outro. O poema é uma forma-conteúdo que se pode depositar em múltiplas traduções – a leitura do autor, a leitura do ator, a impressão em papel bíblia ou paperback – sem deixar de ser ele mesmo. Foi concebido para a reprodução, ainda que haja um culto pelo original manuscrito (ou datiloscrito) e pela primeira edição.

Isso acontece também com músicas e filmes, que continuam reconhecíveis como os mesmos, veiculados por quaiquer meios, ainda que possam perder algo de sua inteireza original, como é o caso, por exemplo, de filmes que tenham sido esteticamente concebidos para explorar todos os limites da tela grande e que sejam exibidos no monitor de um netbook. Ou mesmo que, sem dúvida, exista caráter autoral na interpretação de uma mesma canção por diferentes intérpretes – caso em que cada versão, por si só, emerge como uma obra performática única.

Historicamente, pode-se dizer que há um desdobramento que vai das obras singulares àquelas criadas para serem reproduzidas em inúmeras cópias, disseminadas principalmente quando da emergência dos meios de reprodução técnica para as massas.

Os poemas visuais concebidos para suportes diferentes do papel podem tornar-se formas híbridas, caminhando para o primeiro grupo, o das obras únicas. Como, muitas vezes, são traduções de trabalhos criados originalmente para livros ou revistas, o seu percurso desenvolve-se, de certo modo, à contrapelo do movimento histórico mais amplo dos suportes artísticos, em que a reprodutibilidade técnica surge como um fenômeno tardio. O próprio infinitozinho de Arnaldo Antunes ilustra o fenômeno – como se viu, teve versões em papel, escultura gigante, totem de aço reproduzido em dez cópias numeradas - antes de ser traduzido no nanofio. Na sua versão de seis metros, o poema poderia ser obviamente remontado em qualquer outro lugar, mas certamente a sua reprodução seria dificultada pelas grandes dimensões e pelo material envolvido.

Todavia, é na transcriação de Júlio Manzi que se acentua o aspecto de obra irreprodutível. Irreprodutível não apenas porque o sentido primeiro do poema depende de seu aspecto minúsculo, para além dos olhos humanos, mas também devido à precariedade de sua escrita, que, embora gravada a laser em letras de forma, tem toda a indefinição e inacabamento de uma caligrafia titubeante. Compare-se, nesse sentido, o poema brasileiro com o seu irmão britânico da Universidade Cardiff, com os seus caracteres tipográficos precisos, industriais, certamente traçados de maneira prévia antes de sua gravação final na versão nanoscópica.

Ainda que se tentasse refazer infinitozinho em um outro nanofio, como reproduzir o movimento humano que o gerou em sua forma específica, marcada pelo titubeio e pela imprecisão, com letras de diferentes tamanhos e traçados, com sua impressão digital única? Qualidade que, não custa lembrar, resgata aquela presente na primeira encarnação do poema de Antunes, em que o traço era o rastro de um gesto, relação orgânica entre homem e signo.

Poder-se-ía pensar hipoteticamente numa técnica de reprodução que fotocopiasse as letras originais e as imprimisse de outra maneira em um nano-suporte – mas não seria, no caso, como uma reprodução bem feita da Monalisa ou uma cópia xerográfica de um manuscrito qualquer? Essa, aliás, é a proposta de Manzi para a divulgação do poema, por meio de banners.

Não se pode deixar de pensar que, no caso de uma nanoescrita, cada pequeno desvio adquire uma dimensão, um efeito, que certamente não teria em estruturas maiores. A combinação de características caligráficas com a extrema pequenez transforma, portanto, infinitozinho em um artefato poético cuja reprodução é extremamente difícil ou impossível. O seu aparecimento, ainda que encantado pela tecnologia, é mais um desafio aos limites da representação poética (como, no fundo, devem ser todos os poemas) e da visualidade como procedimento.

Em todas as versões elaboradas por Arnaldo Antunes (poema caligráfico, escultura, totem), a transmissão dos sentidos de “infinitozinho” dependia fundamentalmente de um sentido, a visão – e essa característica era uma denúncia da impossibilidade da “forma” dar conta do “conteúdo”, pois como poderia o olho humano abarcar o infinito? O poema de Manzi, por sua vez, se parece render-se, num primeiro momento, ao canto de sereia tecnológico, procurando assimilar a sua pequenez a uma impossível representação da infinitude, na realidade vai além disso, ao levar os paradigmas da visualidade poética para além do visual propriamente dito e ao transformar-se numa obra que, única, somente se pode dar a conhecer vicariamente, por meio de reproduções em que se perde. Nunca veremos o poema, nem em banners. Assim como a Criação do Homem, de Michelangelo, a menos que formos à Capela Sixtina...

Mas será que alguém o viu?

Infinitozinho, caligrafia de Arnaldo Antunes

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

O tempo comunicado

Salvador Dali: A persistência da memória


Ontem à noite tive de acertar as horas do gravador de DVD que tenho ligado a uma TV. Olhei para o relógio sobre a estante e fiquei em dúvida se ele estava correto. Lembrei-me, então, de consultar o celular, que é atualizado automaticamente pela própria rede. Um modo bem prático de resolver o problema, pois era alta a probabilidade de correspondência entre o horário do provedor do cabo e o do telefone móvel.

Quando criança, em Leme, no interior de São Paulo, lembro que minha mãe acertava os relógios de casa por meio da rádio Cultura AM. Independentemente disso, sabíamos quando era meio-dia ou dezoito horas (falávamos seis da tarde) porque o apito das fábricas ecoava, marcando o almoço e o término da jornada de trabalho.Toda vez que ouço “Três apitos”, do Noel Rosa, esses outros de minha infância são os que soam em meu coração. Também às dezoito, um locutor de voz empostada dava início à Ave Maria, que minha mãe ouvia de vez em quando. Nessas ocasiões, às vezes, ela evocava o modo como conhecia as horas em sua infância e juventude passadas em São João Del Rei, pelo badalar dos sinos das muitas igrejas que fazem parte do encanto daquela velha cidade mineira.

Interessante como essa forma de capturar o tempo (ou de sermos capturados por ele) foi mudando na medida em que o dito cujo passou. Mergulhando ainda mais no passado, agora não em memórias próprias, mas naquelas dos livros, é possível traçar um arco imaginário que vai do tempo medido pelas estações do ano e pelos ciclos do dia e da noite, passa por ampulhetas e relógios de sol arcaicos, pelos grandes marcadores de tempo mecânicos e pelos “cebolões” de antigamente, até chegar nos atuais gadgets eletrônicos que, de modo quase onipresente, pontuam toda nossa vida.

Quando o homem se aburguesou, mudando do campo para a cidade, os tempos mais largos da natureza passaram a ser insuficientes para pautar o andamento do dia, exigindo medições mais amiudadas. As horas canônicas corporificadas nos sinos das igrejas e depois aquelas que podiam ser lidas, em alguns casos, nos relógios de suas torres passaram a integrar o cotidiano.

Na medida em que mudavam os marcadores de tempo, que migravam dos sinais da natureza para instrumentos maquínicos cada vez mais elaborados, foi mudando também a forma de sincronizá-los entre as várias aldeias e cidades nas quais se instalavam. As manchas geográficas que correspondiam a uma mesma medição de tempo foram se espalhando cada vez mais. Mas o atrito era o grande inimigo de um tempo único: ainda que se acertassem de uma única vez dois relógios, se um deles fosse levado para outra localidade, de modo que não se pudesse sincronizá-los ao longo dos dias, depois de algum tempo estariam marcando horas diferentes. Assim, de início, isso que chamei agora há pouco de “mancha” podia cobrir uma área geográfica muito restrita.

A chegada do telégrafo e das vias férreas é que mudou isso. Era preciso coordenar a operação dos trens em diversas localidades, e a informação sobre as horas podia agora ser transmitida ao longo de toda uma rede física por impulsos elétricos. Assim, os principais marcadores de tempo das cidades passaram a ser antes os relógios das estações ferroviárias que os das igrejas, em um mais um passo para a laicização do mundo, com uma segurança maior de que todos eles estivessem apontando a mesma informação. Depois, vieram o rádio, a TV, a Internet, a telefonia celular, imergindo-nos cada vez mais num tempo que não é da vida, mas das máquinas....

Sem que percebêssemos, o tempo virou uma mensagem como outra qualquer, um “conteúdo” a ser compartilhado, cada vez mais regrado, cada vez mais distante dos ciclos e fluxos da natureza. Uma mensagem cada vez mais imperativa, um padrão cada vez mais preciso e uniforme. Se antes era um conjunto de índices do mundo, hoje é majoritariamente o brilho de numerais em telas plásticas, a refletirem não o nosso ritmo ou o das coisas a nosso redor, mas o de uma cultura casa vez mais medida. Como os de meu celular...


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terça-feira, 8 de setembro de 2009

Las Meninas, do entre ao depois



Las meninas, de Velázquez, é uma daquelas telas que entraram para o inconsciente coletivo. Muito já se escreveu sobre sua técnica apurada, que levou para um espaço de grandes dimensões um tipo de construção pictórica a óleo comum apenas em quadros bem menores, numa demonstração inquestionável da maestria do artista. Os desafios colocados pela obra no que se refere à questão da representação e da subjetividade renderam páginas e páginas. E, como não poderia deixar de ser, ao longo desses últimos séculos, Las meninas deu margem a inúmeras cópias, paródias e homenagens que também são um atestado de sua grandeza e capacidade de instigar.

Há alguns meses, num giro de ônibus por Madrid, encontrei uma dessas muitas releituras do quadro, que guardei dentro de um livro, como marcador improvisado, para pensar sobre ela posteriormente. Trata-se de uma peça publicitária de El Corte Inglés, loja de departamentos muito popular na Espanha, que reproduzo neste espaço.


Nesta peça, o ambiente cortês do século XVII rende uma espécie de fashion remake, em que o sóbrio pintor se transmuta num modelo que posa como fotógrafo de moda, cercado por beldades e objetos que buscam reproduzir a composição original de Velázquez.

Muito já se ressaltou a qualidade “quase” fotográfica do quadro em comento, o que certamente contribui para a facilidade de recriá-lo numa propaganda de moda. Todavia, olhe-se bem para Las Meninas.

É óbvio que a obra não se quer um instantâneo. Como que postado diante de um espelho, o pintor não se flagrou (ou se deixou flagrar por um outro eu, o pintor imaginário que o olha) com o pincel sobre a tela, mas em repouso, entre ela e a palheta. O quadro não pretende, desse modo, propor-se como um recorte de um momento singular da realidade, mas como representação de uma cena ideal entre as pinceladas que o informam.
Uma pintura não pode corresponder, a não ser imaginariamente, à captura de um instante único, ainda que busque, enganosamente, representá-lo. Forma-se a partir do acúmulo de gestos e camadas – e a obra-prima de Velázquez não escamoteia isso. Um quadro é a soma de vários momentos a constituirem um outro momento, imaginário. Um auto-retrato não se pinta ao espelho, mas a partir de muitas visadas que se dão a ele, é uma soma de resíduos que não correspondem a nenhum momento singular, mas apenas a algo que está entre a imaginação do pintor e o quadro. A própria memória é um acúmulo de camadas, por mais que se engane sobre isso, não pode se referir a um momento singular. Dito de outra forma, o sujeito que olha a tela enquanto a compõe não é o mesmo que olha o mundo –e nenhum dos dois corresponde àquele que move o pincel.

O auto-retrato fotográfico, porém, pelo menos em tese, de modo geral, procura capturar o momento mágico do clique, ainda que a imagem a ser aprisionada procure transcender esse instante, representando mais do que ele, fazendo com que o registro quase instantâneo seja signo de uma história maior - e ainda que qualquer instantâneo, na verdade, corresponda ao intervalo de tempo que a câmara gastou para capturar a luz e não a um fantasioso instante único.

Olhe-se, todavia, para a propaganda de El Corte Inglés. O fotógrafo também está em repouso, com a câmara entre as mãos. Não é alguém que se fotografa ao espelho. A fotografia aqui posa de pintura. É evidente que o "verdadeiro" fotógrafo também está fora do enquadramento, como o pintor imaginário que olha o Veslázquez de tinta no Las Meninas original. Não se trata de recorte de um movimento, mas, claramente, de uma pose - também como naquele caso. Mas o que era provocação em Velázquez parece aqui mais distração.

Olhe-se mais uma vez. No lugar do pincel, há a câmara, igualada ao instrumento que escreve na tela no caso de Las meninas. Mas no que a tela se transformou aqui? Não num suporte de papel como poderia desejar um olhar mais apressado, mas num refletor, como que a sugerir que o suporte da fotografia é a própria luz. Photo graphein, no caso, mais que escrever com a luz, parece ser escrever na luz. Quase certamente o autor da campanha não pensou nisso. Mas, no caso, manifesta-se uma espécie de inconsciente técnico. O que se quis propor como representação de uma pintura revela-se, afinal, como uma visão da fotografia.

Não seria, nesse sentido, essa peça mais uma manifestação do antigo sonho indicial da fotografia, da visão dela como um recorte do mundo pela luz e na luz – fotografia como um pedaço de realidade a ser colado depois no papel ou no ecrã?

A novela continua...

Fonte da imagem: bibliotecaets.blogspot.com
Depois de um longo intervalo, volto a escrever neste blog. Meu último post foi sobre a multiprogramação na TV digital. O que mudou até hoje? O governo finalmente condescendeu que a TV Cultura colocasse no ar os seus outros canais. Mas as promessas de que seriam editadas regras, permitindo a extensão desses direitos às demais emissoras, não foram cumpridas até hoje. A Abra – Associação Brasileira dos Radiodifusores – entrou com ação na Justiça Federal, visando a suspender o artigo 10.3 da Portaria 24/2009, do Ministério das Comunicações, que fixa que apenas TVs públicas podem oferecer a multiprogramação. A ação se fez acompanhar de um pedido de liminar, que foi negado, mas o mérito ainda não tem data para ser decidido.
Pelo jeito, a novela terá ainda muitos capítulos. O vilão todos imaginam quem seja.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Muito além do Cidadão Kane?


A TV digital brasileira voltou recentemente à mídia devido à decisão do Ministério das Comunicações de proibir, pelo menos momentaneamente, a multiprogramação fora do âmbito das TVs públicas. O assunto ganhou um colorido especial, pois a TV Cultura de São Paulo, afrontando a portaria ministerial, chegou a lançar dois canais utilizando a sua faixa de concessão. O Ministro reagiu, dando quarenta e oito horas para que os canais fossem tirados do ar, e ameaçou a emissora paulista de cassação do seu direito de fazer transmissões digitais. A Cultura recuou, e o caso, ainda agora no mês de abril, está na justiça, sem desfecho previsto.

Sobre o incidente, primeiro chama a atenção a pouca cobertura que lhe deram os principais veículos, sinal claro de que a sociedade não está prestando muita atenção ao assunto.

O tom variou muito nos poucos jornais que abordaram o assunto. O mais duro talvez tenha sido o da coluna da Daniel Castro, na Folha de S. Paulo. Segundo o jornalista, “ (...) o ato, assinado pelo ministro Hélio Costa (Comunicações), atende a interesses das grandes redes privadas, que não querem a concorrência de novos canais. Mas prejudica grupos como o Abril, que pretendia transmitir os canais Fiz e Ideal, hoje só na TV paga, nas frequências abertas da MTV.”

Algumas abordagens foram mais brandas. No Portal Terra, em 10/01/2009, a coluna de Cristina de Luca, referindo-se ao affaire Cultura, dizia que o tom do ministro foi “conciliatório”. Depois de expor a posição da Cultura, que defende haver uma brecha legal para a manutenção dos dois canais, haja vista que o Decreto de criação da TV digital se sobreporia juridicamente à Portaria ministerial, a jornalista lembrou que o referido Decreto não menciona claramente a multiprogramação, por um lado, e por outro – “com todas as letras” - estabelece que cabe ao Ministério das Comunicações a emissão de normas complementares sobre o assunto. Isto é, a tal brecha legal defendida pela Cultura não existiria.

Ou seja, estamos diante de mais um imbróglio que se arma em torno de uma tecnologia que chegou cercada de promessas. No fundo, é claro que das principais vantagens oferecidas pela TV digital – alta definição, portabilidade, mobilidade, multiprogramação e interatividade – bem pouco se concretizou até agora.

Fiquemos neste caso, que envolve a multiprogramação. Caso se imagine o espectro radioelétrico como uma estrada em que se reservam faixas exclusivas para cada carro (canais), pode-se conceber a TV analógica como um conjunto de motoristas um pouco tontos, que podem sair de seus limites a qualquer momento. Por isso, cada canal analógico corresponde a uma faixa bastante larga para que os carros não causem interferências nas rotas uns dos outros. Na TV digital, o transporte das informações é mais preciso. Numa mesma largura de faixa, é possível então transmitir uma imagem com bem mais qualidade (informação) ou criar subdivisões para diversos canais, com a trasnmissão de conteúdo mais variado. No caso do padrão japonês escolhido pelo Brasil, é possível transmitir numa mesma faixa um único canal em alta definição ou quatro canais padrão.

Essa facilidade é enxergada por muitos como um caminho de democratização do espectro, permitindo inclusive que mais entidades possam gerar conteúdo televisivo. Essa possibilidade, juntamente com o caráter interativo, poderia fazer da TV, desse modo, antes uma mídia de massas que de massa no sentido tradicional. No limite, seria possível conceber uma multiplicação de canais comunitários, dando voz a universidades, sindicatos e outros organismos representantes da sociedade civil. Ou, por outro lado, seria como se algo da TV a cabo se mudasse para o espectro aberto, sem a necessidade de caríssimas assinaturas por sua audiência.

Um exemplo concreto dessas possibilidades é o projeto da TV Cultura, ameaçado pela atuação do Ministério. A tentativa é de criar uma espécie de novo mundo universitário virtual, por meio de dois canais, o da Univesp e o Multicultura, focados em telecursos e na busca de audiências mais segmentadas.

Mas, no mundo das TVs comerciais, vê-se que há resistências ao uso pleno da tecnologia. Grandes redes objetam que é preciso vender espaço para propaganda, para que seja possível produzir mais conteúdo. Num tempo em que há um redirecionamento das verbas publicitárias, com a dispersão da audiência e a multiplicação das mídias, a ponto de gurus pregarem que estamos próximos do fim do comercial de TV como o conhecemos, é possível entender que haja receio em investir-se em mais canais, o que poderia levar a uma fragmentação ainda maior do público-alvo. Em suma, não adiantaria somar as audiências menores de vários canais para convencer um anunciante a soltar o seu dinheiro. Esse receio é explícito, por exemplo, em excerto de entrevista de Fernando Bittencourt, diretor da área de engenharia da Rede Globo, publicado na Folha de S. Paulo.

Hoje já se acumula no Brasil uma considerável literatura acadêmica sobre a TV digital terrestre. As abordagens são muito variadas e, como sempre que o assunto são as mudanças trazidas por uma virada tecnológica qualquer, é possível encontrar vozes apocalípticas e integradas, convenientemente postadas dos lados de uma trincheira por onde correm águas bastante turvas. Nos meios acadêmicos, as hostes integradas parecem ser mais numerosas, devidamente encantadas com as potencialidades abertas pela nova tecnologia. Pelo menos são mais barulhentas, talvez porque, em termos numéricos, haja bem mais gente que pouco esteja se lixando para isso, enquanto parte dos apocalípticos ache melhor perder o seu precioso tempo com outros assuntos. Todavia, de modo geral, o que se vê mais são discussões sobre as potencialidades da nova tecnologia sob os aspectos de sua interatividade e mobilidade, passíveis de reflexos tanto na forma de as pessoas se relacionarem com a mídia quanto na própria estética televisiva.

Que as possibilidades abertas pela televisão digital – quando ela “pegar” e se “pegar “– são muitas, não há dúvidas. Mas um caso como o que se menciona aqui, referente à regulamentação do uso da tecnologia no mundo real, mostra com clareza que, quando se fala desse tipo de TV, trata-se de bem mais que uma questão meramente de tecnologia, linguagem ou estética. Não há como pensar o futuro de qualquer mídia, principalmente de uma mídia nova, sem entrar no campo da economia política. Isso é ainda mais forte quando se trata de uma mídia que só pode operar em larga escala, como é o caso da TV ou do cinema, para buscar um exemplo mais antigo. Principalmente nesse caso, concorrem para a sua conformação, para a concretização de suas virtualidades, uma série de forças econômicas e políticas, que atendem aos interesses mais diversos.

A televisão – qualquer que seja ela - realmente precisa ser paga por alguém. Ou seja, implica um modelo de negócio ou de financiamento público. Nesse sentido, são bastante conhecidas as mazelas do sistema brasileiro, marcado pela concentração das grandes redes nacionais em umas poucas mãos, caracterizadas por grande força econômica e política. Infelizmente, muito do que esse sistema sempre possuiu de cartorial e fechado no mundo analógico foi trazido para o digital. As capitanias que compõem o espectro radiomagnético continuam a atender a interesses políticos e foram preservadas, basicamente, nas mesmas mãos em que estavam, com o interessante argumento de que era preciso preservar investimentos. Uma tecnologia nova não mereceria que se permitissem novas maneiras de exploração do espectro? A multiprogramação não poderia ser um caminho para isso?

A menos que se acredite na possibilidade de uma sociedade totalmente livre, em que todos os indivíduos e corporações ajustem seus limites naturalmente, seja guiados pelo bom senso, pela bondade ou por uma força invisível qualquer, há de se admitir que as relações entre os vários atores sociais devem ser reguladas. A democracia ainda parece ser o melhor sistema para isso, mas numa sociedade complexa sempre haverá lobbys e movimentos interesseiros, a ponto de Rosseau – um pensador sem dúvida otimista - não ter acreditado que pudessem sobreviver democracias em estados de grande porte. Nesse sentido, pode-se pensar inclusive que o sucesso da democracia encontra-se num ponto de equilíbrio entre a ação de poucos e a informação para muitos, que podem impedir a ação desses poucos sempre que ela interferir no bem geral.

Como estamos numa sociedade capitalista, regulação e modelo de negócio caminham lado a lado. E, como no sistema capitalista tapuia poucos se assentam no topo da cadeia alimentar, sempre é possível pensar que esses poucos estejam agindo para preservar ou ampliar os seus interesses em detrimento de causas mais nobres.

Num cenário como o atual, seria desejável que, enquanto a TV digital não vem de verdade, as outras mídias gastassem um pouco mais de tempo para informarem sobre o que está acontecendo nos bastidores, nesse momento em que se desenha o que será o futuro da TV brasileira. Não podemos esquecer que, mesmo perdendo espaço para competidores como a Internet, a TV aberta continuará sendo por muitos anos uma das principais arenas para o exercício da cidadania.

Debater as suas potencialidades tecnológicas, de que modo elas podem servir aos interesses da sociedade civil, é muito importante para a democracia. Exigir explicações públicas sobre os motivos por que se restringe, ainda que momentaneamente, o uso pleno das novas capacidades tecnológicas, é tão ou mais importante do que discutir o destino de uma verba pública específica. Intelectuais, líderes da sociedade civil, cidadãos de modo geral, deveriam estar preocupados com isso. No entanto, bem poucos parecem ter acordado até agora.

terça-feira, 31 de março de 2009

Aniki-Bóbó



Neste final de semana, assisti a uma pequena preciosidade do cinema: Aniki-Bóbó, de Manoel de Oliveira. Eu ía escrever do “cinema português”, mas percebi que assim restringiria a apreciação de uma obra que não merece ser aprisionada entre as fronteiras de um adjetivo nacional.

Neste filme de 1942, sua primeira obra de ficção, o poeta-cineasta ainda não era esse que conhecemos, o realizador de O Quinto Império, Um filme falado ou O Princípio da Incerteza. Há um lirismo quase piegas em alguns momentos, uma ação mais marcada do que em seus filmes posteriores. Muitos poderão achá-lo menos chato. A música interfere na narrativa de um jeito que depois não faria mais parte da sintaxe desse criador, o único que hoje sobrevive desde o cinema mudo. Mas, de qualquer modo, é Manoel de Oliveira que está ali inteiro, na capacidade de capturar poeticamente fragmentos de uma realidade maior do que qualquer câmera, reconstruindo-a por meio de um olhar que é, ao mesmo tempo, o de um velho e de uma criança.

É quase um milagre assistir a esse filme fora de uma mostra qualquer. Manoel de Oliveira é uma raridade em nossas locadoras, quase ninguém o conhece no Brasil, esse país tão próximo e tão distante de Portugal. Naquele país mesmo, quem o conhecerá? Essa dificuldade fica ainda maior no caso de um filme antigo, preto e branco, difícil de encontrar até mesmo em Lisboa. Vi-o com imagens um pouco oscilantes e legenda em italiano que, às vezes, ajudava a entender as palavras dessa difícil língua portuguesa do além-mar, diluídas no som ruim de uma cópia colhida na Internet, ripada de uma transmissão da RAI por algum maluco benfeitor.

Quase caí na tentação de dizer que Aniki-Bóbó é um filme sobre crianças. Mas é um filme sobre gente, sobre seres humanos que estão sempre em formação. Uma história sobre dúvidas éticas. Quem rouba é capaz de matar? Matar é o desejo, ainda que abrupto e passageiro, de fazê-lo, ou o ato em si? Nele o deslinde de um crime que não era crime até pode trazer o apaziguamento final, mas é impossível ao espectador atento esquecer que, por um momento, uma mão se ergueu com raiva.

A brincadeira de polícia e ladrão, que lhe dá o título, ganha conotações épicas, na medida em que a película trata dessa pequena grande luta do homem consigo mesmo. É um épico das pequenas coisas da vida, mas isso não o faz menor. Na tela, crianças amam, traem, mentem, roubam, ficam em dúvida, sofrem, tornam-se grandes em sua pequenez. Assim como no mundo o fazem os homens, crianças sempre, na medida em que estão continuamente a aprender e a desaprender sobre si mesmos.


Em Aniki-Bóbó nada é firme, porque tudo é humano. O menino acha roubar feio, mas rouba para conquistar a menina que, se assim não fosse, não lhe daria atenção. O guarda é uma quase alegoria da punição, uma encarnação da consciência pesada, mas tem também o olhar de um pai compreensivo. O dono do armarinho, de ogro, comerciante sem coração, transforma-se em quase santo, apenas para voltar depois a uma condição muita humana. E assim por diante.

Até o que filme possa ter de precário - as interpretações de alguns atores, algumas imagens surradas - de modo intencional ou não, acaba por contribuir com o desenho ambíguo que ele traça.

Aniki-Bóbó, desse modo, transforma-se numa história de formação, de descoberta, mas não apenas da formação e da descoberta que fazem parte da caminhada da criança rumo ao adulto. O jogo nele é bem mais complexo, mais sutil - encena no fundo essa dificuldade que é ser homem, mulher.

Deu no The New York Times


Mais uma sobre a Internet, agora colhida da transcrição de um artigo de Alex Wright no caderno “The New York Times”, da Folha de S. Paulo, em 30/03/2009:

Em 2008, o Google obteve o trilionésimo endereço na sua lista. Isso mesmo: o trilionésimo endereço! Confesso que tenho dificuldades de compreender um número tão grande. E o artigo esclarece que esse trilhão refere-se tão somente à superfície da Web, pois os programas de busca chamados crawlers (rastejadores) não conseguem atingir as camadas mais profundas da rede, compostas de bancos de dados preparados para responderem a consultas que precisem da digitação de dados específicos.

A busca pelo que o artigo chama de “web profunda” (talvez fosse mais correto chamar de internet profunda, pois a web, por definição, é a camada mesma de superfície da rede) mobiliza diversos pesquisadores pelo mundo afora. O desafio é grande, pois é preciso desenvolver ferramentas de busca mais inteligentes, capazes de traduzir o desejo de busca de alguém numa ponta da linha para os milhões de bancos de dados que existem na outra.

O artigo fala em “consumidores” e “empresas”, pensando obviamente no potencial de mercado desses futuros buscadores. Menciona a possibilidade de usuários consultarem arquivos públicos do governo, apresentando-a como uma forma de páginas de notícias locais ampliarem a sua cobertura.

De qualquer modo, para lembrar a postagem anterior deste blog, o volume de informação disponível se tornará ainda maior. Talvez determinadas buscas fiquem mais incisivas, tirando um pouco do romantismo da flaunerie internética atual ou a fazendo menos exasperante às vezes.

Creio que não podemos ter ilusões: os avanços técnicos, neste caso como em tantos outros, continuarão a ser impulsionados pelo desejo de venda. Todavia, muito além do mercado, talvez seja necessário perguntar em que medida esses novos mecanismos de procura poderão servir à cidadania, por meio dos novos acessos que potencialmente se oferecerão às entranhas dos governos. Ou talvez que novos perigos ameaçarão a nossa cada vez mais encolhida privacidade…

segunda-feira, 23 de março de 2009

O grande blá blá blá

Fonte da imagem: http://belogue.files.wordpress.com/2008/01/bla_bla_belogue.jpg

No Primeira Chamada (publicação de bordo da TAM), de 23 de março de 2009:

INTELIGÊNCIA
75 pilhas de livros daqui até o Sol
Esse será o volume de informação digital produzida em 2010. Use de um jeito inteligente.

E, ironicamente, na mesma página, logo abaixo:

DESPERDÍCIO
Falta inteligência na Internet

Na Internet, 80% dos dados novos produzidos são conteúdos desestruturados.

Fico a pensar no volume de informação não digital e desestruturada que sempre se produziu diariamente. Bilhetinhos na porta da geladeira, listas de compras, fofocas, piadas em bares, torpedos, relatórios administrativos, anotações em diários, poemas, rascunhos, trabalhos escolares, anotações científicas, lembretes, declarações de amor, fotos analógicas, canções logo esquecidas. A diferença é que tudo isso não está no ar e, portanto, não pode ser acessado, intencional ou inadvertidamente, por muitos. Certamente, se tudo fosse publicado e empilhado, teria de sair da galáxia...

A informação gerada no planeta sempre cresceu exponencialmente, com todos tendo acesso a apenas uma pequena parte dela. Se a Internet não colocou ordem na bagunça, veio a se tornar um grande espaço comum, uma espécie de gigantesco quadro virtual, onde parte da torrente informacional pode se colar, destruturada ou não. O desafio é justamente extrair algum ordem disso, gerar mensagens da barafunda cibernética, para que essa diversidade não resulte em mera entropia. O primeiro passo para isso talvez seja justamente não ficar encantado em excesso com o excesso de dados disponíveis. O segundo, encontrar uma postura entre o flaneur, o detetive e... o Urtigão desconfiado.

Mas que é muito melhor ter informação desestruturada em excesso do que não ter nenhuma, ah, não há dúvidas!

domingo, 22 de março de 2009

A volta dos regionalismos 2


Mas, retomando o último post, é bom lembrar um sentido em que talvez seja possível falar hoje de “região” ou “local”, sem preconceitos e de forma a categorizar uma discussão. Como dizia Sócrates, defina seus termos, que então conversamos...

Voltemos, para isso, à resenha de Vivien Lando mencionada no início da postagem anterior, a qual, ao se referir a Galiléia, dizia que o romance “(...) felizmente, passa longe do new regionalismo que tentam lhe atribuir: se finca no presente e permanece atento a uma realidade na qual, até segunda ordem, a globalização é soberana.”

Admito que ainda não havia lido o termo “new regionalismo”, ou pelo menos lhe prestado a devida atenção. Talvez já venha tendo um uso mais largo e apenas a minha ignorância não o percebeu. New regionalism (ou a sua tradução “novo regionalismo”, quase sempre na forma plural), por sua vez, é corrente, para se referir a fenômenos complementares ou contrários à globalização e que marcam esta virada de século. A expressão lembra que vivemos num mundo em que, se as fronteiras nacionais, por um lado, parecem se erodir, de outro, explode em movimentos locais de auto-afirmação.

Nesse contexto, a idéia de “região” ganha novas roupagens, cada vez mais caracterizada como um construto simbólico e social, dominado por imagens subjetivas, ainda que o que se encontre em jogo possa ser quase sempre o econômico.

A resenha de Vivien Lando, de forma inteligente, utiliza de modo negativo a expressão linguisticamente híbrida “new regionalismo”. Todavia, refletindo livremente sobre o termo, não há como negar que se trata de uma expressão interessante. Na união de um adjetivo inglês a um substantivo português, como que se corporifica o fenômeno que se pode observar numa dada região modificada pelos efeitos da chamada globalização.

Isso me lembrou artigo de Priscila Ferreira Perazzo e Môica Pegurer Caprino, lido há algum tempo no livro Comunicação e inovação - reflexões contemporâneas. Discutem-se ali as possibilidades de convivência ou interface entre o global e o local (ou regional) por meio da apropriação das informações globalizadas.

Primeiro, destaca-se o aspecto conflituoso dessa realidade, em que se chocam tradições contra as informações novas que chegam pelas várias mídias. As autoras, citando Martin-Barbero, lembram que o próprio processo de globalização acarreta um sentimento de deslocamento que pode reforçar o "local" e até mesmo promover a sua revalorização como “ hábito onde se resiste (e se complementa) a globalização, sua auto-revalorização como direito à autogestão e à memória própria, ambos ligados à capacidade de construir relatos e imagens de identidade”.

Eis aí um espaço de embate simbólico em que certamente a literatura tem muito a dizer, mergulhando suas mãos cheias de tinta na terra - seja a dos Pampas, a do sertão de Pernambuco, a das margens do Amazonas, a da Marginal do Tietê ou a da Praça dos Três Poderes.

Eis um sentido provisório, precário, para “região” e “regionalismo”, que pode englobar narrativas sobre Manaus, Curitiba, Manhattan, Oropa, França e Bahia, cada uma com suas vozes e cantos particulares, no que elas possam ter de contribuição para a diversidade cultural e a constituição de uma memória coletiva que não exclua o outro, mas coopere com um repositório geral de experiências múltiplas.

Ou seja, para que a memória seja de todos, ela deve alimentar-se das lembranças de muitos. O universal somente pode ser gerado por uma travessia do particular.

"Regionalismo" ou "localismo" ganham, assim, uma conotação bem particular, cujo uso crítico pode ser bastante legítimo nestes tempos globalizados, em que importa buscar aqueles sinais particulares que impedem todos de diluir-se na mesmice.
Ulisses também se lançou ao mundo, como o homem contemporâneo, mas soube amarrar-se a um mastro quando necessário e pôde ser reconhecido por uma cicatriz e pelo conhecimento específico sobre o tálamo, marcas de sua Ítaca, de sua vivência num canto específico daquele mesmo mundo em que tanto navegou.
Os cheiros e sons de Manaus ou de São Paulo, índices recuperados literariamente por alguns de nossos escritores, podem ter essa função de amarração simbólica que impede o homem de se perder ou de não ser reconhecido pelos seus pares.
Nesse sentido, todos podemos ser regionalistas - como Woody Allen ou Thomas Mann, por que não?