segunda-feira, 31 de maio de 2010

A aura, de Nossa Senhora Aparecida à Madonna



Ferreira Gullar, em crônica na Folha de S. Paulo de domingo passado, revisitou o conceito de aura, tal como Walter Benjamin o abordou no famoso "A obra de arte na época da reprodutibilidade técnica". O autor do Poema sujo, com a clareza e o estilo de sempre, falou da perplexidade que provavelmente se abateria sobre o filósofo alemão diante da notícia de um automóvel Bugatti sendo vendido, em leilão, por algumas dezenas de milhões de dólares. E concluiu que, ao contrário do que imaginava Benjamin, a proliferação de reproduções de uma obra de arte contribui para reforçar-lhe a aura.

Um Bugatti, lembra Gullar, é fruto do design industrial e não uma obra de arte. Por definição, é algo para a produção em série, não para ser um objeto único. Benjamin, em seu ensaio, defendeu a idéia de que a reprodução técnica, ao colocar em xeque a noção de obra única, extinguiria a aura que a envolvia e sacralizava. O Bugatti, ao atingir elevado preço, é prova de que essa aura não teria se esgotado, mesmo no caso de um objeto não artístico como um carro.
Bugattis - Em: www.dcomercio.com.br/.../dcmidia/2009_carros.htm

Embora o artigo de Walter Benjamin continue uma obra-prima, imperdível, cintilante, plena de iluminações, Gullar está certo. As pessoas hoje podem encontrar a Mona Lisa por toda parte, reproduzida em camisetas, cartazes, peças de publicidade, enciclopédias, livros de arte. Mas basta ir ao Louvre e ver a multidão de turistas se acotovelando em torno do quadrinho (digo assim referindo-me às dimensões físicas da obra, é óbvio) para perceber que a aura persiste, independentemente de quantas reproduções haja. A Mona Lisa é única. E todo aquele bando de turistas, antes de vê-la pessoalmente, a conhecia por reproduções em livro, revistas, TV, Internet.

A aura, a princípio, é um conceito religioso, depois transferido para a estética. Aura é coisa de seres divinos. Ou de ídolos. Um ídolo é um objeto sagrado, único. Nossa Senhora Aparecida é uma estátua única, localizada numa única cidade do planeta. Mas todas as reproduções de Nossa Senhora Aparecida em plástico, gesso, resina guardam algo da sacralidade da santa para as pessoas que acreditam nela, embora todos saibam que aquela não é a original.

O fenômeno, na realidade, é até mais complexo, pois muitos sabem que mesmo a estátua que se localiza no vale do Paraíba não é, em certo sentido, original – o que ela tem de sagrado derivaria de ter sido objeto – ou instrumento – de milagres realizados pela santa verdadeira que está no céu.

Assim, por mais que todas sejam reais, há uma gradação do que poderíamos chamar de níveis de verdade, que começa na Mãe de Deus, passa pela imagem “original” de Aparecida do Norte e pelas reproduções em muitas igrejinhas do Brasil, até chegar no iconezinho de plástico vendido no camelô.

Pode-se dizer: é uma gradação da mesma ordem daquela que vai da Mona Lisa do Louvre até uma reprodução publicitária no jornal, passando por uma fotografia do quadro de da Vinci estampada num livro de arte.

É inegável que há algo de fetichismo nesse processo. O ídolo tem poderes por uma transferência de sacralidade. O fetiche é sagrado por ser parte de um sagrado maior. Pedaços dos deuses e dos santos ou coisas que foram tocadas por eles, ainda que indiretamente, são capazes de guardar e transmitir o sagrado. A reprodução de formas não é apenas icônica, é indicial também, de modo que a semelhança entre a representação e o deus é a própria presença do deus, embora na forma de alguns poucos traços.

Só por isso é que pode existir o vudu, que ferir um boneco é ferir a pessoa. As pessoas simples sabem que, no caso de reproduções, a diferença entre semelhança e contiguidade é, no fundo, apenas didática. Uma imagem é, desse modo, uma parte daquilo que representa, é um “pedaço” tanto quanto uma parte arrancada ou um objeto que foi tocado pelo deus. Nesse aspecto, não apenas as fotografias são indiciais – também o são pinturas, desenhos, estátuas, caricaturas.
No fundo, há forte parentesco no processo de constituição do fetiche (no sentido religioso), da relíquia (objeto que pertenceu ao sagrado, ou parte de seu corpo) e do ícone (representação de santo ou deus).

O "Único" que continua sempre único reside também em suas partes ou pode transmitir algo de sua presença pelas marcas que são deixadas por qualquer toque. Por isso, o osso da perna (ou de um dedo mindinho) de um deus é também sagrado, como o é também - embora provavelmente em um grau menor - o objeto que foi tocado por ele (como a lasca da verdadeira cruz) ou um retrato que guarda os traços da divindade.

Às vezes os “pedaços” ganham vida própria, esquecendo-se mesmo a origem de seus poderes. O conceito de arte pela arte não seria, de alguma forma, uma manifestação desse fenômeno? A obra surge independente, orgulhosa de seu solipsismo, sem nada a ver com o mundo ou com o seu criador, tomada de vida própria, incriada, como um divino que se profanou mantendo a sua grandeza.

Desse modo, a palavra “fetichismo” aqui pode ser lida tanto por uma perspectiva psicanalítica, no sentido de um investimento libidinal numa parte que é tomada pelo todo, quanto num sentido marxista de atribuição de vitalidade própria às coisas. No momento em que arte e religião se separaram, o místico transformou-se em sentimento estético. Essa é uma das teses principais que estão por trás do artigo de Benjamin – e parece-me correta.

Pode-se acrescentar , todavia, que, no recuo do sagrado, o aparecimento dessa espécie de aura profana não se restringiu ao estético. Que o digam os altos preços alcançados no mercado por sapatos da Madonna (não a Senhora católica, mas a cantora), souvenirs de filmes hollywoodianos, o pênis amputado de Napoleão Bonaparte, apenas para citar alguns exemplos. O chamado star syistem e o mercado como um todo se apropriaram da aura. Objetos únicos continuam auráticos e objetos raros são mais auráticos do que aqueles que existem aos milhares. Objetos raros são objetos caros. Essa é uma maneira de a unicidade do sagrado aproximar-se da lei da oferta e da procura, ou vice-versa ...



Sapatos de Madonna - Em: madonnaever.blogspot.com/2009/12/sapatos-de-m...

Em outras palavras, há “deuses” profanos que, com o seu toque, podem transmitir, ainda que parcialmente, a sua aura para os objetos que tocaram. Talvez seja esse um dos fatos que Benjamin, em seu texto magistral, não percebeu. Por isso, um vestido de Marilyn Monroe é objeto de culto laico, ou o pinto amputado de um quase lendário imperador francês pode valer uma fortuna...


Da mesma forma, a reprodução da Mona Lisa - ainda que o quadro de Da Vinci seja considerado como uma realidade em si própria, ou talvez até por causa disso - acaba carregando, em grau maior ou menor, um pouco da aura da original. No mundo do profano, essa aura se esgarça muito mais facilmente que no mundo religioso, mas o fenômeno persiste, ainda que muito esmaecido.

Assim, não é a simples existência de uma aura dessacralizada que poderia definir a arte, mas de um tipo de aura, caracterizado por um grau extremo de fetichismo, em que a obra ganha vida e poderes próprios. A aura, no caso, é da obra em si e não algo transmitido pelo autor ou que vem da coisa representada.

O texto de Ferreira Gullar associa diretamente valor de mercado com presença aurática. E aqui também, de novo, está correto. De certa forma, o mercado de arte, desde que se constituiu, sempre soube disso. Não é a toa que as gravuras e bronzes artísticos têm as reproduções limitadas. Há uma estreita relação entre o mito da unicidade e a lei da oferta e da procura, como já lembrei aqui. O raro vale mais. Independentemente de suas qualidades reais e certamente maiores, um Bugatti vale mais do que um fusca ou um dos velhos Fiat 147. Mas esse vai valer muito mais daqui a alguns anos, quando for uma raridade, como um Ford de Bigode. Por isso, o tempo é um instituidor de auras.

Mas essa não é uma relação tão reta assim, não vamos simplificar aquilo que não é simples. Uma foto pode ser mais aurática que uma pintura, quando representa um morto querido, pois é uma imagem arrancada “diretamente” dele. Mas o “original” de uma fotografia, o seu negativo – considerado não naquilo que tem de re-apresentação, mas de produção , de verdadeiramente “original” – é aurático per si. Assim como a primeira edição de um livro, ou os seus manuscritos. Esses podem ser ainda mais auráticos, por trazerem mais diretamente o “toque” do autor. Um original perdido é ainda mais aurático, é como um deus envolvido pelo mais profundo dos mistérios.

Insinua-se aqui uma distinção, entre a aura da obra única e a aura do autor, entre o ídolo que se esqueceu de haver um deus anterior a ele e a relíquia.

No caso dos sapatos de Madonna, do suposto pênis de Napoleão ou dos manuscritos de Macunaíma estamos diante de relíquias profanas. No do Bugatti, defrontamo-nos com um ídolo de memória curta. O mercado constitui ídolos, fetiches no sentido marxista. O que é famoso ganha valor, é acrescido de uma diferença que lhe dá unicidade.

A Mona Lisa conserva hoje sua aura de única, reforçada agora por aquela de também ser um ídolo do mercado, uma figura do star system. Tem aura, mesmo para quem não compreenda a aura da arte, ou para aqueles que confundem Leonardo da Vinci com uma das tartarugas ninjas.

Differents versions of The Mona Lisa - Em: perfumequeen.wordpress.com/2008/12/

domingo, 23 de maio de 2010

Da Tabacaria para a praia - Poemas vis, de Gustavo de Castro

Figura de Satã, por Gustave Doré


Há uma passagem, em Poemas vis, de Gustavo de Castro, que retoma o poema "Tabacaria", do heterônimo pessoano Álvaro de Campos. Diz o trecho em questão:

Nem todas as coisas foram ditas. Falta dizer as necessárias.
Mas quem as dirá? O poeta, o são, o da tabacaria?
Falta dizer que não há respostas para as perguntas fundamentais.
Falta dizer que o bem e o mal não existem senão em função do bem.
Falta dizer eu te amo, te amo, muito, te amo, eu, todos os dias. (p. 20)

E completa logo na sequência:

E ainda que esse homem só diga coisas fundamentais todos os dias, ainda assim não saberá fazer silêncio.
Nem todos os silêncios foram ditos. Falta calar os fundamentais.
Mas quem os calará? O poeta, o são, o da tabacaria?
(p. 20)

Faço desse excerto a minha chave de entrada no livro. De cara, aparece nele uma oposição entre o falar e o calar. Há também ecos, ainda que inconscientes, de Wave de Tom Jobim (“fundamental é mesmo o amor”, lembram?). Necessidade e fundamento, calcados no dizer, parecem encontrar-se, apenas para serem negados depois por uma espécie de primazia do silêncio. “Dizer o silêncio” é o fundamental, antes mesmo de dizer o amor, antes mesmo de dizer o bem. “Dizer o silêncio”, todavia, é também “calar o fundamental”. Como podem fazê-lo seja o homem comum, o da tabacaria, seja o poeta, esse que justamente se define pela palavra? O fundamento é uma aporia? Heiddeger na veia?

De certa forma, então, todo poema, no fundo, é vil, não presta, não tem serventia, na sua vã tentativa de buscar o indizível, na sua impossibilidade de calar. Reconhecê-lo é um caminho para fundar uma poética. Fazê-lo é uma opção estética, mas também ética.

Mas o “vil” do título, além de "inútil", também significa "reles", "ordinário", de "baixo preço", aquele que se opõe ao nobre, ao elevado, àquele que se fecha em sua torre de marfim ou de pedras. Tem parentesco, na origem, com “vila” e “vilão”, aquele que vive fora do castelo, nos campos e ruas do mundo.

Nesse sentido, lembre-se do já mencionado poema de Pessoa. Nele, há uma oposição básica entre o “dentro” e o “fora”, com o poeta contemplando a rua pela janela. Do outro lado, está a tabacaria do título. Essa antítese de origem desdobra-se em outras, quais sejam a realidade e o sonho, o objetivo e o subjetivo – pares que também se deslocam ao longo dos Poemas vis, tensionados entre a procura do sentido e a certeza de um vazio pleno de possibilidades, único fundamento possível para as coisas e os ditos.

O próprio Gustavo de Castro já qualificou a Tabacaria como “(...) um solilóquio diante do abismo (...)”, no seu livro ensaístico O mito dos nós. Esse silêncio que não se cala e, ao mesmo tempo, não se pode dizer, que está na poesia, é sempre um exercício diante desse abismo, um modo privilegiado de contemplá-lo, de reconhecer a sua existência e de, ao mesmo tempo, tentar projetar-se além dele pelo exercício das palavras. Alguns o sabem, outros não.

Não por acaso, a capa do livro traz a figura central de uma ilustração de Gustave Doré, para o Paraíso Perdido de Milton e que mostra, justamente, o chamado Anjo do Mal (mas que se confunde também com Lúcifer, o anjo da luz), num momento antes da queda. Na capa do livro, porém, a ambientação da gravura original, a rocha sobre a qual a figura se apóia na beira do abismo, foi retirada, de tal modo que se poderia dizer que a figura alada, em negro sobre o fundo branco, está a voar - o que não deixa de ser outra maneira de encarar o precipício. Precipício que é, ele mesmo, o fundamento das coisas que não se podem dizer, silêncio materializado.

Ou como diz Castro, em outra passagem dos Poemas vis, quando poetiza sobre aquilo que chama de “três formas de abaixar” (e não se esqueça que abaixar-se é, justamente, um modo de se aviltar):

A terceira forma é o exercício do abismo: de vez em quando, observar vendavais. Ficar de pé no nada, bem na beirinha. Depois, soprar bem muito: com os poros, a boca e os olhos. Só para ver o vento que sai de dentro da gente. (p. 26)
Poesia, portanto, não só como ins-piração, mas também como ex-piração. Lançar-se para o mundo, por mais incomunicável que seja o exercício poético. Convite que os poemas insistem a todo momento:

Saia do seu canto de muro, homem. Vá passear na praça. Você gosta dos abetos no canteiro? Já fumou um cigarro na praia ou acendeu uma fogueira com lascas de eucalipto?
(...)
Qualquer coisa, homem. Qualquer coisa. Menos jogar tua âncora de sol neste canto de muro.
(p. 14)

Ou:

Nesta noite, apenas vestir as melhores emoções. E sair.(p. 18)

Sair como uma puta da poesia, aberta a todos os amores e versos, por mais controversos que sejam. Literalmente, cair na vida. Ser capaz de dizer:

Vendi meu gozo por contos-de-rés. Corpo que todos tem; coitos-di-versos a todos digo amém!
Fiz sexo com as palavras, mas elas se foram, deixando marcas de baton na minha boca.
Prostitui então minha lábia no falo da Poesia. Só para ter a cada dia uma nova paixão.
Por ser puta da Poesia, aceito no meu peito qualquer coração.
(p. 11)

Puta estranha essa, cujo corpo “ (...) todos tem” e não “(..) todos têm”, que não se propõe, desse modo, apenas como objeto de muitos, mas como aquela que se aproveita de todos aqueles que pretensamente a possuem! E se a falta desse circunflexo foi erro de composição do livro e não intenção consciente do poeta, não importa, pois está bem de acordo com o que o restante da escritura propõe e dispõe!

Puta que apesar de sua disponibilidade – ou por causa dela - , é abandonada pelas palavras “(...), que deixam, no entanto, sua marca, só para ter a cada dia uma nova paixão”, paixão que, por sua vez, rima – talvez sem querer querendo – com “qualquer coração” ....

Postura bem próxima e, ao mesmo tempo, distinta, daquela do Álvaro de Campos no poema famoso, o qual olha o mundo através da janela e lança mão do cigarro apenas para deixar ir embora a vontade de versos enérgicos, enquanto sonha com a felicidade possível/impossível de um casamento com a filha da lavadeira...
O Poeta Vil não pode morar numa mansarda, não pode entregar-se a essa outra forma de nobreza, e sugere fumar na praia, como um exercício em que poesia e vida se confundem... A certeza do abismo não se resolve, assim, em niilismo, mas em convite para a sujeira, a beleza, a insignificância e a infinita possibilidade de significados da vida.
Apenas o exercício do abismo - a constatação de que "o nada para ser nada/necessita ser homem" (p. 42) e que, afinal, não há tanta diferença assim entre a árvore e o vento - é que pode fundamentar a leveza da segunda parte do livro.

Há toda uma poética aí, que se coloca a contrapelo de parte da poesia brasileira contemporânea. Nos últimos trinta anos, seja em avatares do concretismo, seja em diálogos, ainda que involuntários com a L=A=N=G=U=A=G=E americana, muitos de nossos poetas buscam uma fatura mais descarnada, mais voltada para si mesma, uma poesia que dialoga com a poesia, num movimento centrípeto, dominado por algo que, em outro momento, alcunhei de “ilegibilidade”, o qual questiona os próprios mecanismos de representação e, muitos vezes, coloca a metalinguagem ou os aspectos plásticos do linguístico à frente mesmo daquilo que as palavras podem ter de tentativa – embora frustrada – de ser ponte com o mundo.

O poeta não pode ficar em torres de marfim, ou em mansardas, fechado em versos ou não versos de difícil compreensão. Deve sair de seu “canto de muro” para o canto impuro:

Saia do seu canto de muro, homem. Vá passear na praça. (...)

Sei que você gosta de poesia, homem. Que escreve poesia também. Mas tem poesia na tua vida neste canto de mundo? Saia de seu canto de mundo, homem. Vá passear na praça: Olhar as meninas; torcer contra o Flamengo, tomar uma cerveja gelada, jogar dominó; esperar o inverno...

Se você tiver filhos e gostar de gargalhar com bestagens, ainda melhor. Subirá no meu conceito. Fará um canto ainda melhor. Se puder, pendure também uma samambaia por perto. Solte pipa. Lave o balde de roupa suja ou caminhe sem direção rumo a estrada noturna.
(p. 14)

O poeta Philadelpho Menezes, em A crise das vanguardas, classificou os grandes movimentos artísticos do século XX em duas correntes principais: aquela que queria diluir a vida na arte e aquela que buscava imergir a arte na vida. Não se pode esquecer também que houve aqueles que, no fundo, propuseram voltar as costas para a vida. Gustavo, todavia, parece buscar uma outra síntese: vida e arte numa difícil, porém possível mistura, com samambaias penduradas, numa mestiçagem entre arroubos beatniks e um plácido fruir de filhos e bestagens. Uma proposta que, sobretudo, não parece distinguir fazer poesia de viver – em outras palavras, um autêntico viver a poesia. Uma vida, todavia, que seja procura, antes que remanso. Uma vida que seja ela também abismo bem-vindo para se mergulhar.

Ao corporificar essa proposta, a fatura de Poemas vis é inegavelmente erudita, de um leitor de muitas fontes, que nela ecoam reprocessadas. No livro, a “vileza” de fundo ecoa na “vileza” da forma, sem grandes cabriolas visíveis de estilo. A simplicidade da quase prosa da primeira parte do livro e dos pés-quebrados da segunda, porém, escondem habilidade formal. A escritura atenta aos seus próprios meandros manifesta-se não só na musicalidade de certas passagens, na retomada de ritmos populares, nas brincadeiras de linguagem, mas também no achado que traz para a primeira parte do livro (“azeviches”, vale dizer domínio do negro) os textos mais massudos, manchas negras quase sem espaços, enquanto a segunda parte (estanhos, vale dizer domínio do branco, que se torna cinza, porém, no cotidiano contato com o mundo) se recheia de poemas mais arejados, versos mais curtos, com maiores espaçamentos, a trazer mais brancura para as folhas do livro.
Gustavo de Castro parece, assim, dizer que há outros caminhos para uma poesia contemporânea que seja inovadora sem ser vanguardeira, ao pleitear uma poética suja, vil - aberta, contudo, à vida. Ou antes: suja, vil, porque aberta à vida, atenta tanto às samambaias quanto à simplicidade no escrever.

Gustavo de Castro - Fonte: opovo.uol.com.br/opovo/vidaearte/866151.html

sábado, 22 de maio de 2010

A vaca, de Petrov, ou como pinturas podem ganhar vida

No final da semana passada, assisti a uma pequena jóia, o desenho A vaca (The cow), de Aleksandr Petrov, de 1989, baseado num conto do escritor soviético Andrei Platonov. Confesso que ainda não conhecia o trabalho desse cineasta e, nesse primeiro contato, fiquei encantado. Cada fotograma é uma pintura perfeccionista, que ganha vida na sequencia do filme. O traço é marcado por aquele realismo que apenas os sonhos possuem. Pensei que poderiam ser aquarelas, mas descobri que Petrov pinta seus fotogramas com os dedos em placas de vidro. A história flerta com a pieguice, mas resolve-se numa delicadeza que se transforma em poesia filmada.

Pesquisei no Google para resolver um pouco a minha ignorância. Ali, fico sabendo que A vaca é um dos primeiros filmes desse autor, que geralmente busca inspiração na literatura. Filmou também O sonho de um homem ridículo (The Dream of a Ridicolous Man), de 1992, baseado em Dostoievski, A sereia (The Mermaid), de 1996, inspirado em Pushkin, e O velho e o mar (The Old Man and the Sea), de 1999, homenagem a Hemingway, com o qual ganhou o Oscar de melhor curta de animação em 2000. O último trabalho do qual encontrei registro foi O meu amor (My Love), inspirado no também russo Ivan Shmelyov.

Depois desse primeiro contato, tentei encontrar DVDs com as obras de Petrov, mas não consegui. Há trabalhos dele no Youtube e os principais filmes estão disponíveis para baixa no blog O Sétimo Projetor (setimoprojetor.blogspot.com).

A vitória da escrita

Teia. Fonte: bitbiblio.blogspot.com/2008_04_01_archive.html

Vivemos a era do fim da escrita? A resposta parece ser sim, quando ouvimos falar de um possível fim do livro, dos jornais impressos, dos correios tradicionais. A resposta parece ser sim, diante de um mundo audiovisual que se digitalizou e proteicamente nos assalta e acolhe por todos os lados.

Mas não, não vivemos o fim da escrita. Pelo contrário, a contemporaneidade é o momento da sua vitória e onipresença. Pensemos em qual é o princípio, qual é a índole dessa tecnologia de tradução, comunicação, arquivo e domínio do mundo. Nela, alguns poucos signos - sejam os milhares do hiragana japonês ou as poucas dezenas dos sistemas ocidentais – combinam-se logicamente para significar e transmitir coisas e conceitos. Essa lógica pode ser sintagmática,– como no caso da escrita européia, ou paradigmática, como no caso dos ideogramas, mas a base é sempre a mesma: redução da complexidade do mundo a um conjunto limitado de sinais que podem ser permutados e combinados de inúmeros modos.

Com “escrita” aqui não quero dizer apenas os caracteres destinados a representar as palavas e os intervalos entre elas, mas também sons (como as notas musicais), números, operações lógicas e matemáticas, concomitâncias e sequenciamentos. Não por acaso, entre os antigos egípcios, Thoth era, ao mesmo tempo, o deus da escrita e da matemática – e também da magia.
E o que é justamente essa famosa digitalização que, na atualidade, permite a desmaterizalização de dados, palavras, imagens e sons?

É simplesmente uma forma de escrita, que leva quase ao limite uma lógica milenar, reduzindo as coisas a sequencias de sinais que significam “zeros” e “uns”, “sins” e “nãos”, eletronicamente transmissíveis e armazenáveis.

Mais que isso, é uma forma de escrita que leva quase ao limite a lógica particional e sintagmática que está por trás dos sistemas ocidentais.

Sobre essa plataforma, podem “rodar” imagens , sons, palavras, outros sistemas sígnicos, sintagmáticos ou paradigmáticos.

O mundo atual organiza-se agora em múltiplas camadas de interfaces. Entre as coisas e as suas representações visíveis, legíveis, rodam vários programas, em várias linguagens.

Surgem, assim, duas categorias de pessoas. Há quelas que são alfabetizadas em algumas dessas linguagens e as analfabetas. Mas provavelmente ninguém é alfabetizado na cadeia toda.

Assim, ser alfabetizado na escrita digital, em qualquer de seus níveis, não significa, a princípio, muita vantagem. O alfababetizado pode ser simples parte da máquina de escrita, não necessariamente um criador, ou seja, alguém capaz de modificá-la e gerar informações novas a partir dela.

Para isso, alfabetizados e analfabetos precisam, sim, tentar compreender como ela funciona.

Hieroglifos cursivos no Livro dos Mortos. Fonte: atrasdosolhos.wordpress.com/.../

domingo, 9 de maio de 2010

Sobre códices e e-readers


Muito bom o cartoon acima, do Reinaldo, aquele mesmo do grupo Casseta& Planeta, que estreia hoje seção no jornal O Globo, com o título “A arte de zoar”.

Deixemos de lado o fato de que o autógrafo, no caso, é do Steve Jobs. Imaginaram o Guttemberg autografando livros impressos?
Dá para conceber um sebo de ebooks? No bairro de Akihabara, em Tóquio, há alguns anos, frequentei lojas e bancas especializadas em vender computadores e periféricos usados aos montes. Daqui a pouco, vão oferecer também, com certeza e-readers, se já não o fazem,. O suporte dos e-books, quando usado, está mais para traquitana de ferro- velho ou lixo antiecológico do que para artigo de sebo.



E já pensou numa noite de autógrafos ou numa dedicatória carinhosa para a namorada, quando se trata de um gadget desses?

Isso desvela, ao meu ver, algo que nunca vai se perder quando se trata do bom e velho códice impresso, o livro de papel tal qual o conhecemos: o quanto ele tem de tátil, de sensível, por oferecer-se a todos os sentidos (tem cheiro, cor, peso próprio), e de afetivo, pois guarda marcas, rugas do tempo, pode deixar entrever histórias de manuseio, acumular dedicatórias, que são marcas físicas de vidas e desejos..

Por isso, acredito, sinceramente, que as duas formas de veiculação da escrita vão continuar a coexistir durante muito tempo. Daqui a pouco não dará mais para a gente imaginar enciclopédias e atlas, por exemplo, em papel. Mas uma boa e velha história de detetive para ler na praia, num momento de preguiça, continuará se casando bem com um paperback – ainda que haja versões mais sofisticadas, interativas, para os iPads da vida.

Imagino que, daqui a algum tempo, a maioria dos livros seja lida em e-readers cada vez mais baratos e práticos. Mas que, nas outras franjas de um vasto espectro, continuaremos a ter edições para colecionadores, livros que explorem justamente o que o papel tem a oferecer com exclusividade aos sentidos, exemplares impressos com o fito de serem autografados em momentos especiais, bem como edições baratas – de bolso ou não – destinadas a um consumo rápido.

Por isso, confesso, não vejo a hora de comprar meu primeiro e-reader, que certamente vai facilitar muitas leituras. Mas que não vai subsituir, com certeza, aqueles livros comprados de última hora no aeroporto, os garimpos nos sebos de Brasília e São Paulo, a emoção de reler a dedicatória de um professor morto num ensaio importante para minha formação intelectual, ou de folhear a edição em fac-símile de um Livro de Horas medieval, recuperando um pouco o que seriam os movimentos de um leitor daquela época... Ou a de reencontrar nas estantes o primeiro livro comprado para mim por meu pai, ou o Voltaire que dei de presente para a namorada e que voltou para minha biblioteca quando me casei...

sábado, 8 de maio de 2010

Tecnologias inovadoras

TV social - Imagem reproduzida de www.socialteam.org/br/?attachment_id=513

A revista Galileu trouxe recentemente reportagem sobre algumas invenções e pesquisas que podem vir a ter grandes impactos nos próximos anos, sob o título "10 tecnologias que vão mudar o mundo, segundo o MIT". Várias das tecnologias enfocadas são diretamente voltadas para a áreas de comunicação e afins. Sem pretender ainda refletir sobre o que pode haver de realmente inovador, de sonho ou de marketing vazio em cada caso, a título meramente informativo, reproduzo aqui as partes do artigo que remetem a questões discutidas vezes ou outra em Ágora Taba:

Todo ano a Technology Review, revista científica publicada pelo respeitado MIT (Massachussets Institute of Technology), faz uma lista de tecnologias emergentes que apresentam soluções para diversos problemas da humanidade. A seleção é feita entre pesquisas recentes de produtos e serviços que a indústria ainda não adotou em larga escala.

Confira a lista das tecnologias:

Busca em tempo real

O Google está muito interessado em incorporar as atualizações feitas em redes sociais aos resultados. O desafio, além de tornar essas informações buscáveis, é atribuir relevância para alguns updates em detrimento de outros, e assim acrescentar conteúdo útil. Rastrear e classificar conteúdos atualizados a todo instante em redes sociais exige muito mais velocidade e novos algoritmos para acompanhar, em tempo real, milhares de updates no Twitter e Facebook, por exemplo. Estas duas redes de relacionamento não têm problema em vender suas atualizações para os buscadores. O Google não revela muito o segredo da análise das atualizações. Mas, Amit Singhal, o responsável por esse desenvolvimento, diz a Technology Review que um perfil no Twitter com muitos seguidores e muito retwitado sai na frente de outros menores. Uma atualização feita no Facebook tem mais relevância quanto maior o número de amigos do usuário e ainda quanto mais amigos seus amigos colecionam. Outra maneira é usar a geolocalização, dependendo do local de onde é produzida uma mensagem ela seria mais relevante. Se alguém postar sobre terremoto e estiver localizado próximo à área atingida sua informação será provavelmente mais relevante do que outras mais distantes.

3D móvel

Quem pensava que a popularização de imagens tridimensionais aconteceria pelo cinema ou grandes e modernos aparelhos de TV, pode ter uma surpresa com o Samsung W960 lançado na Coreia do Sul em março. O celular conta com um software desenvolvido pela empresa Dynamic Digital Depth que converte imagens em 2D para 3D. Na posição vertical, as imagens parecem bidimensionais, mas é só virar o aparelho para a posição horizontal que elas saltam da tela e ganham volume. O software cria ilusão de perspectiva nas imagens estimando a profundidade dos objetos em cena com várias pistas, como se há um céu numa paisagem, ele provavelmente estará mais ao fundo do que as montanhas. Então, o programa produz pares de imagens levemente distintas que nosso cérebro interpreta como se fosse uma só com profundidade.A tecnologia até poderá ser usada em TVs 3D, mas a tecnologia funciona melhor quando existem poucos ângulos de visão envolvidos, por isso o smartphone seria a melhor opção. A Dynamic Digital Depth começa também a desenvolver meios de adaptar games para 3D sem óculos nos celulares. A empresa de pesquisa DisplaySearch divulgou uma pesquisa recente que prevê que até 2018 teremos 71 milhões de aparelhos móveis com a tecnologia.

TV social

A cientista convidada do MIT, Marie-José Montpetit, tenta fundir as redes sociais à TV tradicional e transformar a experiência até agora passiva dos telespectadores em algo mais colaborativo. Os grandes conglomerados da TV vêem com bons olhos a mudança, esperam que, ao linkar cada espectador com seus amigos, eles deixem de trocá-la por sites re relacionamento. A indústria publicitária também pode ganhar com isso, afinal, será mais fácil produzir conteúdo personalizado de acordo com os interesses do telespectador. Ainda é difícil saber quando e como a tecnologia vai tomar forma, mas a pesquisadora e seus alunos apresentaram um protótipo ano passado.

Programação em nuvem


A computação em nuvem já começa aparecer com mais frequência. Se fala dela muito sobre a previsão de que ela proporcione mais condições de processamento e armazenamento. Mas pouco se sabe sobre como a nuvem vai ser usada na programação. Com grandes bancos de dados geridos por empresas como Amazon e Google, as possibilidades são grandes. Fazer com que um programa em nuvem acesse em tempo real as informações sobre os posts mais vistos no Twitter e selecione anúncios que estejam relacionados a isso, por exemplo, pode trazer grandes mudanças na propaganda na web.Hoje, esse tipo de uso exige desenvolvimento aplicações complexas dos programadores. O que Joseph Hellerstein, da Universidade da Califórnia, promete fazer é simplificar a vida dos programadores. Ele trabalha num software que diminuirá o trabalho complicado de rastear informações e classificar tudo o que acontece na rede. O programa já tem um nome, Bloom e deve ser lançado ainda em 2010.

Computação em nuvem - imagem reproduzida de flammarion.wordpress.com

Como Alice se perdeu no País das Maravilhas

Imagem promocional de Alice in Wonderland, de Tim Burton

No final de semana passada, fui assistir à Alice do Tim Burton. Confesso que me decepcionei. Não que o filme seja ruim, é que o encontro entre o diretor e os livros de Lewis Carroll prometia mais. Essa Alice é um bom exemplo de como a reunião de ingredientes de primeira – uma história clássica e criativa, um cineasta de estilo muito próprio, bons atores e uma tecnologia nova, o 3D – podem resultar num prato de fast food.

A riqueza original das aventuras da menininha em seus mundos de sonho perde-se num enredo que, afinal, acaba se resumindo num embate entre forças boazinhas e mazinhas, tendo como pano de fundo uma espécie de receita de autoajuda para a heroína, que, já adulta, precisa decidir entre casar com um aristocrata sem graça e tornar-se aprendiz de uma companhia de comércio! Pois é nisso que consiste a "libertação" de Alice no final do filme - embarca para a China para negociar do outro lado do mundo, cumprindo um velho sonho paterno. E quem estudou um pouco de história sabe o quanto teve de rapacidade e mesquinhez o avanço da Inglaterra para o Oriente.
Diga-se, a bem da verdade, que há uma espécie de convencionalismo irônico na divisão entre "bons" e "maus" nessa Alice. A Rainha Branca parece mais falsa que a Rainha Vermelha. Lutam porque têm de lutar, não porque haja algum princípio cósmico em jogo, como poderia acreditar, por exemplo, um seguidor acrítico de George Bush. Não se trata do Bem e do Mal, com maiúsculas, mas de uma disputa que guarda algo da maldadezinha miúda das crianças mimadas. Se assim não fosse, não seria Tim Burton. Mas justamente essa falta de estofo dos oponentes, essa superficilialidade de brincadeira, que soa irônica no embate entre as rainhas de fancaria, é que também permite, por outro lado, Alice partir depois na sua jornada comercial-colonialista.

Assim, o que a Alice de Burton tem de moderno, de contemporâneo – mocinha prafrentex capaz de enfrentar convenções sociais e traçar um destino para si mesma – não pode deixar de lado o que a modernidade tem de pior. Digo “prafrentex” de propósito, por ser uma gíria de algum momento entre os anos 1960 e 1970, já ultrapassada. Vamos convir que Alan Moore deu um destino bem mais imaginativo para a Alice adulta na série pornográfica em quadrinhos Lost Girls.

O visual do filme, com seu tom ao mesmo tempo sombrio e luxuriante, é puro Tim Burton, a ponto de a gente pensar o que o 3D foi fazer ali. É mais que perfunctório, chega a atrapalhar. Li em algum lugar que Alice foi filmada originalmente em 2D e depois adaptada para o 3D. Por isso certamente seus enquadramentos foram pensados para o plano e algumas vezes a ilusão da terceira dimensão se quebra porque os limites da tela estão no lugar errado.

Há filmes ou sequências que parecem usar o 3D para levar o espectador para dentro do cenário ou da paisagem. Vejam-se, nesse sentido, diversas passagens de Up, altas aventuras – na minha opinião, a película que melhor utlizou o 3D como elemento narrativo até o momento- e algumas de Avatar, em que, por exemplo, uma sala de conferência, numa cena, parece prolongar a própria sala de cinema com suas cadeiras. Há casos também – para falar a verdade, a maioria até agora - em que o 3D busca criar um efeito lúdico antes que estético, de parque de diversões mesmo, parecendo jogar objetos na cara da plateia, por exemplo. Na maior parte das vezes, porém, Alice não faz nem uma coisa nem outra. No filme, o 3D surge como um maneirismo a somar-se acidentalmente a tantos outros que já fazem parte da estética de Burton, mas sem se integrar a ela. Nesse aspecto, esperemos por alguma obra que o diretor americano venha a conceber realmente para essa nova tecnologia.

Assim, no que toca a adaptações cinematográficas, fico mais com a Alice surrealista do tcheco Jan Svankmajer, essa sim capaz de recriar de outro modo a linguagem inventiva de Carroll. Ou mesmo com a primeira Alice da Disney, que pode bem ser pasteurizada e fofinha demais, mas, sem dúvida, é menos pretensiosa e tem um psicodelismo avant la lettre que não deveria nunca ser desprezado.

Cena de Alice, de Jan Svankmajer