domingo, 23 de maio de 2010

Da Tabacaria para a praia - Poemas vis, de Gustavo de Castro

Figura de Satã, por Gustave Doré


Há uma passagem, em Poemas vis, de Gustavo de Castro, que retoma o poema "Tabacaria", do heterônimo pessoano Álvaro de Campos. Diz o trecho em questão:

Nem todas as coisas foram ditas. Falta dizer as necessárias.
Mas quem as dirá? O poeta, o são, o da tabacaria?
Falta dizer que não há respostas para as perguntas fundamentais.
Falta dizer que o bem e o mal não existem senão em função do bem.
Falta dizer eu te amo, te amo, muito, te amo, eu, todos os dias. (p. 20)

E completa logo na sequência:

E ainda que esse homem só diga coisas fundamentais todos os dias, ainda assim não saberá fazer silêncio.
Nem todos os silêncios foram ditos. Falta calar os fundamentais.
Mas quem os calará? O poeta, o são, o da tabacaria?
(p. 20)

Faço desse excerto a minha chave de entrada no livro. De cara, aparece nele uma oposição entre o falar e o calar. Há também ecos, ainda que inconscientes, de Wave de Tom Jobim (“fundamental é mesmo o amor”, lembram?). Necessidade e fundamento, calcados no dizer, parecem encontrar-se, apenas para serem negados depois por uma espécie de primazia do silêncio. “Dizer o silêncio” é o fundamental, antes mesmo de dizer o amor, antes mesmo de dizer o bem. “Dizer o silêncio”, todavia, é também “calar o fundamental”. Como podem fazê-lo seja o homem comum, o da tabacaria, seja o poeta, esse que justamente se define pela palavra? O fundamento é uma aporia? Heiddeger na veia?

De certa forma, então, todo poema, no fundo, é vil, não presta, não tem serventia, na sua vã tentativa de buscar o indizível, na sua impossibilidade de calar. Reconhecê-lo é um caminho para fundar uma poética. Fazê-lo é uma opção estética, mas também ética.

Mas o “vil” do título, além de "inútil", também significa "reles", "ordinário", de "baixo preço", aquele que se opõe ao nobre, ao elevado, àquele que se fecha em sua torre de marfim ou de pedras. Tem parentesco, na origem, com “vila” e “vilão”, aquele que vive fora do castelo, nos campos e ruas do mundo.

Nesse sentido, lembre-se do já mencionado poema de Pessoa. Nele, há uma oposição básica entre o “dentro” e o “fora”, com o poeta contemplando a rua pela janela. Do outro lado, está a tabacaria do título. Essa antítese de origem desdobra-se em outras, quais sejam a realidade e o sonho, o objetivo e o subjetivo – pares que também se deslocam ao longo dos Poemas vis, tensionados entre a procura do sentido e a certeza de um vazio pleno de possibilidades, único fundamento possível para as coisas e os ditos.

O próprio Gustavo de Castro já qualificou a Tabacaria como “(...) um solilóquio diante do abismo (...)”, no seu livro ensaístico O mito dos nós. Esse silêncio que não se cala e, ao mesmo tempo, não se pode dizer, que está na poesia, é sempre um exercício diante desse abismo, um modo privilegiado de contemplá-lo, de reconhecer a sua existência e de, ao mesmo tempo, tentar projetar-se além dele pelo exercício das palavras. Alguns o sabem, outros não.

Não por acaso, a capa do livro traz a figura central de uma ilustração de Gustave Doré, para o Paraíso Perdido de Milton e que mostra, justamente, o chamado Anjo do Mal (mas que se confunde também com Lúcifer, o anjo da luz), num momento antes da queda. Na capa do livro, porém, a ambientação da gravura original, a rocha sobre a qual a figura se apóia na beira do abismo, foi retirada, de tal modo que se poderia dizer que a figura alada, em negro sobre o fundo branco, está a voar - o que não deixa de ser outra maneira de encarar o precipício. Precipício que é, ele mesmo, o fundamento das coisas que não se podem dizer, silêncio materializado.

Ou como diz Castro, em outra passagem dos Poemas vis, quando poetiza sobre aquilo que chama de “três formas de abaixar” (e não se esqueça que abaixar-se é, justamente, um modo de se aviltar):

A terceira forma é o exercício do abismo: de vez em quando, observar vendavais. Ficar de pé no nada, bem na beirinha. Depois, soprar bem muito: com os poros, a boca e os olhos. Só para ver o vento que sai de dentro da gente. (p. 26)
Poesia, portanto, não só como ins-piração, mas também como ex-piração. Lançar-se para o mundo, por mais incomunicável que seja o exercício poético. Convite que os poemas insistem a todo momento:

Saia do seu canto de muro, homem. Vá passear na praça. Você gosta dos abetos no canteiro? Já fumou um cigarro na praia ou acendeu uma fogueira com lascas de eucalipto?
(...)
Qualquer coisa, homem. Qualquer coisa. Menos jogar tua âncora de sol neste canto de muro.
(p. 14)

Ou:

Nesta noite, apenas vestir as melhores emoções. E sair.(p. 18)

Sair como uma puta da poesia, aberta a todos os amores e versos, por mais controversos que sejam. Literalmente, cair na vida. Ser capaz de dizer:

Vendi meu gozo por contos-de-rés. Corpo que todos tem; coitos-di-versos a todos digo amém!
Fiz sexo com as palavras, mas elas se foram, deixando marcas de baton na minha boca.
Prostitui então minha lábia no falo da Poesia. Só para ter a cada dia uma nova paixão.
Por ser puta da Poesia, aceito no meu peito qualquer coração.
(p. 11)

Puta estranha essa, cujo corpo “ (...) todos tem” e não “(..) todos têm”, que não se propõe, desse modo, apenas como objeto de muitos, mas como aquela que se aproveita de todos aqueles que pretensamente a possuem! E se a falta desse circunflexo foi erro de composição do livro e não intenção consciente do poeta, não importa, pois está bem de acordo com o que o restante da escritura propõe e dispõe!

Puta que apesar de sua disponibilidade – ou por causa dela - , é abandonada pelas palavras “(...), que deixam, no entanto, sua marca, só para ter a cada dia uma nova paixão”, paixão que, por sua vez, rima – talvez sem querer querendo – com “qualquer coração” ....

Postura bem próxima e, ao mesmo tempo, distinta, daquela do Álvaro de Campos no poema famoso, o qual olha o mundo através da janela e lança mão do cigarro apenas para deixar ir embora a vontade de versos enérgicos, enquanto sonha com a felicidade possível/impossível de um casamento com a filha da lavadeira...
O Poeta Vil não pode morar numa mansarda, não pode entregar-se a essa outra forma de nobreza, e sugere fumar na praia, como um exercício em que poesia e vida se confundem... A certeza do abismo não se resolve, assim, em niilismo, mas em convite para a sujeira, a beleza, a insignificância e a infinita possibilidade de significados da vida.
Apenas o exercício do abismo - a constatação de que "o nada para ser nada/necessita ser homem" (p. 42) e que, afinal, não há tanta diferença assim entre a árvore e o vento - é que pode fundamentar a leveza da segunda parte do livro.

Há toda uma poética aí, que se coloca a contrapelo de parte da poesia brasileira contemporânea. Nos últimos trinta anos, seja em avatares do concretismo, seja em diálogos, ainda que involuntários com a L=A=N=G=U=A=G=E americana, muitos de nossos poetas buscam uma fatura mais descarnada, mais voltada para si mesma, uma poesia que dialoga com a poesia, num movimento centrípeto, dominado por algo que, em outro momento, alcunhei de “ilegibilidade”, o qual questiona os próprios mecanismos de representação e, muitos vezes, coloca a metalinguagem ou os aspectos plásticos do linguístico à frente mesmo daquilo que as palavras podem ter de tentativa – embora frustrada – de ser ponte com o mundo.

O poeta não pode ficar em torres de marfim, ou em mansardas, fechado em versos ou não versos de difícil compreensão. Deve sair de seu “canto de muro” para o canto impuro:

Saia do seu canto de muro, homem. Vá passear na praça. (...)

Sei que você gosta de poesia, homem. Que escreve poesia também. Mas tem poesia na tua vida neste canto de mundo? Saia de seu canto de mundo, homem. Vá passear na praça: Olhar as meninas; torcer contra o Flamengo, tomar uma cerveja gelada, jogar dominó; esperar o inverno...

Se você tiver filhos e gostar de gargalhar com bestagens, ainda melhor. Subirá no meu conceito. Fará um canto ainda melhor. Se puder, pendure também uma samambaia por perto. Solte pipa. Lave o balde de roupa suja ou caminhe sem direção rumo a estrada noturna.
(p. 14)

O poeta Philadelpho Menezes, em A crise das vanguardas, classificou os grandes movimentos artísticos do século XX em duas correntes principais: aquela que queria diluir a vida na arte e aquela que buscava imergir a arte na vida. Não se pode esquecer também que houve aqueles que, no fundo, propuseram voltar as costas para a vida. Gustavo, todavia, parece buscar uma outra síntese: vida e arte numa difícil, porém possível mistura, com samambaias penduradas, numa mestiçagem entre arroubos beatniks e um plácido fruir de filhos e bestagens. Uma proposta que, sobretudo, não parece distinguir fazer poesia de viver – em outras palavras, um autêntico viver a poesia. Uma vida, todavia, que seja procura, antes que remanso. Uma vida que seja ela também abismo bem-vindo para se mergulhar.

Ao corporificar essa proposta, a fatura de Poemas vis é inegavelmente erudita, de um leitor de muitas fontes, que nela ecoam reprocessadas. No livro, a “vileza” de fundo ecoa na “vileza” da forma, sem grandes cabriolas visíveis de estilo. A simplicidade da quase prosa da primeira parte do livro e dos pés-quebrados da segunda, porém, escondem habilidade formal. A escritura atenta aos seus próprios meandros manifesta-se não só na musicalidade de certas passagens, na retomada de ritmos populares, nas brincadeiras de linguagem, mas também no achado que traz para a primeira parte do livro (“azeviches”, vale dizer domínio do negro) os textos mais massudos, manchas negras quase sem espaços, enquanto a segunda parte (estanhos, vale dizer domínio do branco, que se torna cinza, porém, no cotidiano contato com o mundo) se recheia de poemas mais arejados, versos mais curtos, com maiores espaçamentos, a trazer mais brancura para as folhas do livro.
Gustavo de Castro parece, assim, dizer que há outros caminhos para uma poesia contemporânea que seja inovadora sem ser vanguardeira, ao pleitear uma poética suja, vil - aberta, contudo, à vida. Ou antes: suja, vil, porque aberta à vida, atenta tanto às samambaias quanto à simplicidade no escrever.

Gustavo de Castro - Fonte: opovo.uol.com.br/opovo/vidaearte/866151.html

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