domingo, 24 de julho de 2011

Paris é logo ali

O último filme de Woody Alllen, Meia- noite em Paris (Midnight in Paris), parte de um enredo bem simples e já muito batido, para compor uma espécie de conto de fadas altamente contemporâneo, um jogo de espelhos a refletir a busca por algo que está sempre um passo além. Muitos poderiam criticá-lo pela obviedade do núcleo de sua trama. Mas não será justamente essa capacidade de resgatar signos antigos, dando-lhe frescor e sentidos novos, uma das principais características de um autêntico artista?
Gil Pender, o protagonista – interpretado por um esforçado Owen Wilson, que parece dar vida ao Allen de uns vinte anos atrás - vive o que poderia,talvez, ser o sonho de muitos homens. É um roteirista de sucesso em Hollywood, justamente conhecida como “fábrica de sonhos”, tem uma vida confortável, está noivo de Inez, uma linda mulher vivida por Rachel MacAdams, e acaba de chegar a Paris, também por muitos considerada uma cidade dos sonhos.
Mas ele está insatisfeito. Seu desejo está no mesmo lugar em que se encontra, mas em outra época. Gostaria de ser não um roteirista no início do século XXI, mas um genial romancista na Paris dos anos 1920.
A inadequação é tão natural, tão humana, que o espectador dificilmente percebe que o herói, por muitos critérios, chora de barriga cheia. A identificação, a empatia, são imediatas.
Então, Pender tem a oportunidade de entrar, ainda que momentaneamente, no mundo com que sonhava. Durante um passeio melancólico, surge numa esquina um carro amarelo que o arrebata para a festa parisiense dos anos loucos, como um avatar da carruagem mágica da Cinderela. Mas como se trata de um conto adulto, meia noite é a hora de partir e não de voltar.
Durante um tempo, Pender ganha o poder de transitar entre os dias prosaicos e as noites mágicas em que convive com seus ídolos – Cole Porter, F. Scott e Zelda Fitzgerald, Hemingway, Picasso, Salvador Dali, Getrude Stein, Djuna Barnes, Josephine Baker, Buñuel – todos, como ele, estrangeiros naquela cidade mítica.
Que maravilha discutir seus textos com o escritor de Paris é uma festa e tê-los analisados pela autora de Paris França e a Autobiografia de Alice B. Toklas, retratos do mundo mágico em que gostaria de ter vivido!
Ali encontra também Adriana, modelo e amante de Picasso, vivida por uma deslumbrante Marion Cotillard, e ambos se apaixonam. Veja-se que sonho edípico, roubar o coração da mulher de um ídolo...
Mas aquela que poderia ser a companheira perfeita tem o seu desejo em outro lugar. Ideal não é a cidade em que mora, mas a da Belle Époque, a de Toulose Lautrec e Cézanne. Os dois embarcam, então, numa carruagem, rumo à Paris do fin de siècle, onde Adriana decide viver seu sonho. Dividido entre o novo amor e a atração pela era do jazz, incapaz de ficar com Adriana ou de renunciar ao seu mundo de origem, resta a Pender um melancólico retorno ao seu próprio tempo.
Nesse esconde-esconde de desejos, o detetive que o sogro, desconfiado de que Pender traía Inez, contratara para segui-lo, também se perde no passado, na Paris da Renascença, onde perseguido por guardas armados, descobre que todo sonho pode ter algo de pesadelo, ao som das gargalhadas da plateia que Woody Allen, habilmente, faz rir de si mesma.
O paraíso, afinal, só pode ser, para sempre, perdido. Num bouquiniste das margens do Sena, Pender reencontra a sua história com Adriana, contada num livro também perdido, a lhe perguntar de modo oblíquo: “E se você soubesse, se tivesse sido assim e não assado?”. E a denunciar que a ela, Adriana, também algo lhe faltou.
Não vou contar o final do filme, que muitos poderão julgar um pouco caipira e simplório, com o encontro de uma possível felicidade nas coisas simples e próximas, um apaziguamento que me teria soado forçado se “Meia- noite em Paris”, afinal, não fosse uma comédia, um conto de fadas.
Nesse fim, algo se escamoteia, pois essas coisas, pretensamente simples e próximas, não estão em Hollywood, ou no Brooklyn, ou na Mooca ou na Cidade de Deus, mas numa Paris em que Pender pode flanar sem cuidados, sem se preocupar com o estômago - assim como podia ir para os seus anos mágicos, se não com os bolsos vazios, pelo menos com eles cheios de contemporâneos dólares ou Euros que certamente não poderiam pagar um vinho no Maxim’s ou umas ostras no Le Dôme com Hemingway.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Preconceitos



Domingo à noite, assisti, na Globo News, ao trecho de um debate sobre o livro de português Por uma vida melhor, de Heloisa Ramos e outros, selecionado pelo programa de distribuição de livros didáticos do governo federal e acusado pela imprensa de ensinar os alunos de escolas públicas a falarem errado. Ao longo da última semana, já me deparara várias vezes com o mesmo assunto, tanto em jornais quanto na Internet, depois de uma “denúncia” inicial apresentada por um dos grandes diários brasileiros, já nem sei mais qual. Sábado, em O Globo, Wisnick falou do assunto, num texto equilibradíssimo, como tudo o que ele escreve. No domingo, Caetano. E no Estado de S.Paulo , no caderno "Aliás" - que, não custa lembrar, tem por objetivo fazer uma espécie de balanço das principais notícias da semana - , dois artigos, de Sírio Possenti e José de Souza Martins, debruçaram-se sobre o tema. Até a Maria Paula do Casseta e Planeta abordou o affaire em sua coluna na revista dominical do Correio Braziliense.
O fato é que se esbanjou muita tinta e saliva com o pobre livro. Apesar disso, vou gastar aqui uns pixels com ele, pois, sem dúvida, o incidente é sintoma de um fenômeno mais geral.
Na realidade, o livro foi condenado pelo que não disse, de forma apressada, a partir de uma citação tirada de contexto. Não o li – como quase todos que o comentaram – mas é evidente o quanto a condenação foi apressada quando se depara com a mal falada passagem , reproduzida integralmente no artigo de Possenti. Ali se vê que, ao contrário do que muitos disseram, o livro não ensina nada errado, mas frisa bem claramente o que chama de “norma culta”, contraposta à “norma popular”, em que a simples flexão do artigo já é suficiente para indicar o plural.
Ao apresentar as duas normas como possíveis (“você pode falar de um jeito ou de outro”), o livro, por outro lado, critica de passagem os que dizem “o que se deve e o que não se deve falar e escrever, tomando as regras estabelecidas para a norma culta como padrão de correção de todas as formas lingüísticas”. Entre os verbos “poder” e “dever” há duas concepções diferentes de gramática, uma que vê “norma” no sentido descritivo, quase estatístico de conjunto de ocorrências mais comuns – espécie de lei obtida indutivamente - e outra que a enxerga como um modelo obrigatório, do qual devem-se deduzir todas as manifestações concretas, de forma prescritiva.
É fácil de perceber que, no primeiro caso, a língua aparece como uma entidade viva, em que a contribuição milionária de todos os erros pode levar a mutações. No segundo caso, a língua já “evoluiu” e cabe agora mantê-la longe de todos os erros, que somente podem aviltar a sua forma perfeita.
Dizer que a primeira opção tende ao relativismo parece-me reducionista. Parece-me antes que se encaminha para um sistema multipolar, em que “erros” são apenas os escorregões individuais, incapazes de se concretizarem num padrão, numa norma descritiva. Com várias normas possíveis (uma escrita, outra falada, uma culta, outra popular, uma brasileira, outra lusitana, outra caboverdiana etc.), o contexto, a situação, é que vão demonstrar o “acerto” de uso de cada uma delas.
“Você” ou “o alfanje” são “erros” que o uso continuado sacramentou. O primeiro , uma contração assassina de fonemas de “vossa mercê”, e o segundo, uma redundância dos artigos “o” português e “al” árabe. Outros “erros” vão impor-se como norma.
Por uma vida melhor diz que construções como “os livro” devem ser evitadas para fugir ao “preconceito linguístico”. O próprio Word reclama quando escrevo assim, sublinhando de verde a expressão, como errada. “Preconceito lingüístico” é um termo muito usado em certos círculos de estudo, tendo servido inclusive como título para um livro de Marcos Bagno. Ele existe, mas creio que formas como “os livro” devem ser evitadas não simplesmente para fugir dele, mas porque a língua é um fenômeno extremamente complexo, sujeito a diversos contextos de uso e variações que podem, às vezes, caminhar para graus diferentes de incomunicabilidade. Para que haja linguagem, algum padrão (ou norma) tem de haver.
Um tesouro das formas mais aceitas pela comunidade de falantes (ou escreventes) é importante para lutar contra essa entropia. Se assim não fosse, no limite, eu poderia falar “pau” para “pedra” e você “pedra” para “água”, impedindo qualquer forma de comunicação. O tesouro, No caso, não é só de vocábulos, mas de regras sintáticas, morfológicas etc. O uso pode acrescentar ou tirar-lhe dobrões, bem como mudar o valor das moedas, alterando o conjunto ao longo do tempo, mas não se trata de um processo fácil. Qualquer uso individual da língua precisa ser confrontado com uma norma ou amparado nela – seja a popular ou a culta - para ultrapassar os limites de um idioleto.
Você pode falar de um jeito ou de outro. Mas um é deles é dominante, não num sentido político ou social, ou mesmo estatístico (“há mais pessoas que falam assim ou assado”), mas quase darwiniano, como uma forma que vai ficar, que vai se sobrepor às outras. Nesse aspecto, por razões óbvias, os padrões escritos ainda são mais resistentes, tendem a prevalecer. As normas gramaticais ensinadas na escola (inclusive pelo livro em questão) têm por base a língua escrita, ou seja, tendem a serem as dominantes, num jogo em que, provavelmente, a sintaxe tende a ser mais resistente a mudanças, enquanto o vocabulário tende a enriquecer-se com a contribuição de erros, palavras estrangeiras e invenções as mais diversas.
Aprender e entender novas formas de comunicação é de suma importância. Como Wisnick frisa muito bem em seu artigo, “Dona Norma”, não como o simples domínio de mais uma variedade lingüística a ser usada para evitar o preconceito, “para usar diante de autoridades ou para preencher requerimentos”, mas como um exercício de pensamento, de lógica. Falar ou escrever de um jeito ou de outro não pode ser fruto da ignorância, mas uma opção decorrente do conhecimento. Depois que se sabe que o “certo” é de um jeito, está-se autorizado a “errar” expressivamente, como o fazem os poetas.
Discordo parcialmente de Caetano Veloso quando diz, referindo-se ao caso em questão, que “não entendo que se queira ensinar lingüística ou sociologia aos alunos de alfabetização”. Realmente quem se alfabetiza precisa de regras bem claras. Mas o livro em questão é para jovens e adultos! Não são alunos de alfabetização, Caetano! Ou vamos abdicar de lhes ensinar também filosofia e dar-lhes apenas ordem unida? Um, dois, um, dois!
Em resumo, a imprensa, de modo geral, errou ao atribuir ao livro de Heloísa Ramos algo que ele não faz, ou seja, que ensinaria algo “errado” aos pobres alunos. Pelo que vi, o livro ensina certo e ainda procura trazer algumas tinturas de lingüística, para além de uma gramática meramente prescritiva. Peca talvez por certa ingenuidade, ao resumir as escolhas lingüísticas a uma questão de se evitar ou não o preconceito lingüístico – o que é abordado, de formas diferentes pelos mencionados textos de Possenti , Souza Martins e Wisnick. Mas, se em textos especializados de lingüística ou qualquer outro ramo do conhecimento, sempre há idéias que precisam ser mais desenvolvidas, gerando dúvidas e debates, o que se dizer de um manual didático, de um apressado artigo de jornal ou da postagem de um blogueiro qualquer? Preferiríamos que aos alunos de uma faixa etária mais elevada fossem passadas meras prescrições, sem oportunidade de discussão ou de exercício do pensamento?
A partir daí, construíram-se diversos julgamentos apressados. “Preconceito lingüístico” virou “preconceito de classe”, apesar de não haver no texto em questão nada que justifique esse salto ilógico (não sei no resto do livro). Daí para se falar de “preguiça intelectual dos professores”, de um lado, ou de um suposto projeto educacional destinado a arrasar as bases da língua portuguesa, de outro, foi um passo. O governo estaria levando o modo de falar do Lula (que, como todos sabem, é repleto de uma ignorância autossuficiente) a nossos infantes! Preconceitos lingüísticos, de classe e políticos se manifestaram livremente, dando forma a teorias conspiratórias as mais diversas.
Minhas filhas estudam num colégio particular de classe média de Brasília. E, no entanto, elas tiveram acesso, de forma talvez um pouco diferente, à mesma abordagem lingüística que há no livro. Seria o governo Lula tão poderoso a ponto de disseminar seus tentáculos dessa forma? Seriam todos os professores preguiçosos, dispostos a aceitar todos os erros para não se verem obrigados a corrigir provas?
Essa superficialidade e rapidez nos julgamentos, esses tribunais públicos instituídos para condenar a partir de versões e de leituras fragmentárias e apressadas, infelizmente, são mais comuns do que pensamos – até mesmo entre os mais inteligentes, capacitados, informados. O caso da Escola Base, guardadas as devidas proporções, parece não ter ensinado muito... E isso é fruto de uma encadear de preconceitos, inclusive entre as elites bem pensantes.
Não li o livro, não conheço os autores, não tenho assim como julgar se a ingenuidade que aqui se mencionou é fruto natural de um texto sem grandes arroubos teóricos, ou se decorre de uma crença politicamente correta. Mas, provavelmente, muitos leram o caso dessa forma. O discurso de que todas as formas lingüísticas são igualmente válidas – certamente ingênuo - é politicamente correto. E, como observou Marcelo Coelho recentemente em artigo na Folha de S. Paulo, ser politicamente correto começa a ser out (não é isso exatamente o que ele diz, mas o sentido é mais ou menos esse). O in, o bem pensante, é ser politicamente incorreto. Rótulos simplificando o debate, cristalizando opiniões, impedindo um diálogo mais profícuo.
E la nave va... Mas sou otimista: preconceitos para lá, preconceitos para cá, enquanto houver esse espaço para a discussão, a sociedade e a cultura só têm a ganhar.

sábado, 21 de maio de 2011

Bebeu?

Lars Von Trier


Lars Von Trier andou falando demais em Cannes. Lamentável. Ainda que se alegue que o que ele disse sobre o nazismo tenha sido tirado de contexto, é impossível negar que meteu os pés pelas mãos. Mais que natural, portanto, ter sido declarado persona non grata no festival.

Uma pessoa pública deve tomar cuidado com o que diz, principalmente se o diz sob holofotes, como foi o caso. Uma boutade sem graça entre amigos é uma coisa. Afinal, somos humanos. Se não passo de um desconhecido jogando conversa fora numa mesa de bar, posso eventualmente brincar, defender idéias em que não acredito, fazer piada. Se as escrevo num blog, numa sala de bate-papo ou nas páginas de uma rede social qualquer, é bom pensar duas vezes. Se sou uma personalidade, devo tomar mais cuidado, lembrar sempre que não somente posso estar sendo gravado, como também que aquilo que digo tem uma maior importância para as outras pessoas . Numa coletiva, então, todas as palavras ganham outro peso. Ainda mais quando se aborda uma questão de tanto peso para a humanidade quanto o nazismo ou as perseguições contra os judeus. Ainda mais quando quem o diz é alguém cujas opiniões têm realmente um peso próprio e não um brucutu como o Mel Gibson.


Foi o que Von Trier disse depois: Não sou Mel Gibson. Justamente por isso, chocaram mais suas declarações. E justamente por isso deveria ter tomado mais cuidado.

O cineasta vai ter de passar um bom tempo se defendendo, dizendo que não foi bem aquilo. A brincadeira custou bem caro. E se Lars Von Trier realmente acredita no que disse, agora a única atitude digna á agüentar as conseqüências, quaisquer que sejam elas. Mas, sinceramente, não acredito nisso.

O que não muda é que os filmes dele são muito bons. Salvo uma grande falha de percepção, não há nada neles de antijudaico ou nazista. Assim, parecem-me exageradas as reações que falam em boicote à sua última produção, Melancholia, que era forte candidata à Palma de Ouro, antes desse rolo todo. Assim que aparecer por aqui, vou assisti-la.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Lobato e o racismo

Desenho de Ziraldo para o bloco que M* é essa?

Há algum tempo, pipocou na imprensa polêmica sobre um parecer do Conselho Federal de Educação que acusava de racista o livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato. Na época, quase escrevi sobre o assunto, admirador que sou de Lobato – justo eu, um mestiço. Acabei deixando passar, mas o assunto volta agora à tona, como reportagem de capa da revista Bravo!

No auge da polêmica, quando se cogitava proibir a distribuição pelo governo das Caçadas, muitas vozes saíram em defesa do escritor, buscando livrá-lo da pecha de racista. Ziraldo chegou a preparar estampa para as camisetas de um bloco carnavalesco, ela mesma acusada de racista, em que Lobato aparecia abraçado a uma mulata. Alguns lembraram todos os aspectos positivos que cercam a Tia Nastácia, encarnação da sabedoria popular, cujas mãos mágicas geraram a boneca Emília e o Visconde de Sabugosa.

Mas Lobato era realmente racista. Não há como negar isso. Como era, para os padrões de hoje, antiecológico e machista. Reconhecer isso faz parte da leitura de sua obra – e não deve impedir que se goste dela por outros aspectos.


Se havia pontos contraditórios em seu racismo – que às vezes servem para tentar escamotear o problema – é porque esse gigante de nossa literatura era sempre um poço de contradições . E mesmo que se descubra um texto com um mea culpa – como a Bravo! deseja em determinado momento - não há como apagar as muitas frases infelizes que ele semeou durante anos.



O criador do Sítio do Picapau Amarelo, o pioneiro de nossa indústria editorial, o campeão do “petróleo é nosso”, o modernista que brigava com os modernistas – esse homem em tantos aspectos à frente de seu tempo era também marcado por um racismo burro, tingido por falsas cores científicas, tão agressivo às vezes que não pode sequer ser desculpado em função de um suposto espírito do tempo.

Mas, diante dessa constatação, cabe perguntar: e daí?

Borges era racista. Celine era racista. José de Alencar era racista. Platão marcava-se por um espírito de classe que hoje soa totalmente anacrônico. A Bíblia tem passagens de um obscurantismo atroz . Por causa disso, devemos censurá-los, jogá-los fora?

Ou, por outro lado, precisamos desculpá-los por causa disso? Ou não serão infantis as duas posturas?

Não é preciso negar, omitir ou desculpar nada. Lobato não precisa de mentiras, inconscientes ou não, de fotos retocadas. Obras literárias não são escritas por anjos. E como disse o Contardo Calligaris na sua coluna da Folha de S. Paulo da semana passada, Deus nos livre dos puros (ou algo semelhante). Ou como também dizia o Jô Soares na época do Telê Santana, referindo-se a um jogador que já não sei quem é (seria o Reinaldo?): eu o quero para atuar na seleção e não para casar com minha filha.

Estamos, no caso, diante de livros muito bons, em que, de forma episódica, em maior ou menor grau, aparece o racismo e não diante de obras racistas em que raramente brilhe alguma qualidade estética ou cultural.

É besteira pensar que alguém, ao ler uma frase racista num livro infantil ,não seja capaz de processá-la (note bem: de buscar o entendimento e não de entrar com uma ação judicial contra ela). E não sou contra notas de auxílio ao professor, em edições didáticas, capazes de contextualizar o assunto e possibilitar discussões em sala de aula. Alguns disseram que são contra os “livros com bulas”, mas creio que há muitos contextos de leitura possíveis, diferentes formas de fruição, e que todas essas possibilidades somente enriquecem a tradição da obra. Se assim não fosse, poderíamos abdicar das edições críticas e do próprio exercício da crítica literária, estética, cultural. Não se trata de "bulas", de prescrições, mas de comentários.


Obras literárias não foram feitas para serem sacralizadas. Devem-se prestar também ao jogo ideológico, às discussões de cada momento, desde que não sejam falseadas. Escritores não são santos, herois impolutos - ninguém é. Lobato merece edições facsimilares, edições fiéis ao texto original, sem qualquer aparato, edições críticas, edições com linguagem atualizada, edições com notas didáticas, mesmo que haja, às vezes, equívocos nelas. Assim como Homero merece edições em grego arcaico, em grego moderno, em inglês, em português antigo, em hipertexto...

Que as crianças - brancas, negras, mestiças como quase todos somos - saibam que Lobato era racista e que escrevia lindas histórias. Que discutam sobre isso. O resto é balela.

domingo, 3 de abril de 2011

Botero e a sombra

El paisaje de Colombia (2004) - Óleo sobre tela


Nunca fui grande fã da obra de Botero. Suas figuras gordas, bochechudas, coloridas sempre me pareceram um tanto quanto rebarbativas. Este não é um julgamento isento do ponto de vista estético, mas certamente exprime um gosto pessoal. Por outro lado, preciso reconhecer que é justamente a estranheza que há nelas e que eu nunca soube definir que pode salvá-las.

Desse modo, para mim, foi uma grata surpresa a exposição Dores da Colômbia, que está em cartaz na Caixa Cultural de Brasília. Ali encontra-se Botero e, ao mesmo tempo, um não-Botero. Por isso, talvez seja possível flagrar o que realmente é Botero, a despeito dele próprio.

A afirmação acima pode soar enigmática. Explico, portanto.

Primeiro, pense-se no Botero mais usual. O pintor colombiano ficou mundialmente famoso por obras de um falso figurativismo, em que possíveis representações de pessoas de grandes proporções, escultóricas, enchem a tela em poses estáticas ou quase e praticamente sem sombras.

Mais de uma vez, já se escreveu sobre o que haveria de resgaste de convenções renascentistas nessa obra, que inclui, além de cenas cotidianas com figuras que parecem grande bonecas, conhecidas releituras de pintores classicos, como Da Vinci, Velasquez e Jan Van Eyck, bem como composições de fundo sacro. Mas é de uma renascença subversiva que se trata, em que os volumes brotam antes do próprio desenho e do uso exagerado das cores do que dos efeitos de iluminação ou dos jogos de perspectiva.

Subversiva também porque a imobilidade das figuras, com um caráter um tanto rígido e majestoso que se sobressai até mesmo quando elas parecem representar alguma ação, remeteria mais a ícones bizantinos despidos de sacralidade do que à pintura italiana do século XVI, se esses ícones fossem gordinhos e não tão esquálidos. Ou a um dos múltiplos avatares do barroco latinoamericano, em que o excesso das figuras poderia ser realmente associado à festa e à alegria de viver – como muitos fazem ao interpretar a obra do colombiano - se as pessoas retratadas não tivessem, via de regra, as bocas tão conspicuamente fechadas.

De acordo com Botero, sombras “sujam” as cores e, por isso, ele as evita. Seus quadros são festas de tintas em que se espalha uma estranha sensualidade, avessa talvez aos gostos atuais,com suas figuras rotundas, nem um pouco saradas ou gostosas. “Não, eu não pinto pessoas gordas” – disse o artista, certa feira, e com razão. O que há em seus quadros não são pessoas, mas formas e cores, aesthesis pura, de uma sensualidade derivada diretamente do desenho e das tintas, assexualizada. O que poderia haver ali seria a gostosura de uma fruta fria, se lembrassemos que uma fruta numa bandeja não passa de um cadáver, por mais apetitosa que chega.

A compostura dos cadáveres exige bocas fechadas, e as figuras de Botero, via de regra, as têm cerradas. Não exprimem gozo, riso, choro, nada. São, de certo modo, naturezas mortas. O que faz com que a sombra que se ausenta ou se minimiza em cada quadro retorne como um recalque que insiste em “sujar” a composição de outro modo, como uma lembrança de que por trás da festa das cores algo espreita. Mas, segundo o artista, “ (...) uma natureza-morta não e uma gravura botânica. O assunto não é a fruta, mas o quadro. O mesmo se aplica a homens e mulheres (...)”

Há aqui um jogo entre mimese e autorreferência, entre uma esquiva representação do mundo (afinal, os quadros não são “abstratos”, é possível reconhecer nele entes do universo “real”) e uma arte que se esgote em si mesma. Se o assunto é o quadro e não os homens e mulheres que o compõe, por que estes estão ali? São “eidolons”, aquelas formas sem vida que, segundo os gregos, eram o que restava dos homens mortos no Hades.

Não é por acaso que, a respeito das pinturas de Botero, já se disse que nelas

Peles suaves, sensuais, aveludadas, cobrem corpos amplos onde, enterradas bem fundo nas carnes, as pequenas almas, sempre bem dispostas, parecem dormir...

Indagado se as suas figuras tinham almas leves, o pintor respondeu certa vez que “elas nunca quiseram ter almas”. É claro que o sentido aqui é outro, mas é isso mesmo que sempre vi em Botero: um mundo sem alma, em que o elemento figurativo, apesar de suas formas pretensamente cheias de carne, opõe-se, naquilo que tem de estático e sem vida, à vibração das cores.

Bem sei que essa visão contrasta com que o próprio autor disse outra vez a respeito de sua produção:

É importante saber de onde provém o prazer de contemplar um quadro. Para mim, é a alegria de viver combinada com a sensualidade das formas. É por isso que o meu problema é criar sensualidade através da forma.


Sensualidade, sim, mas um tanto dessexualizada, de tanto ser estilizada. Alegria de viver? Talvez como objetivo e não como objeto ou resultado.


Dito de outra forma, é como se sempre houvesse uma sombra por trás da falsa alegria e abundância de Botero. Muitos comentadores falaram da ironia que haveria em composições do colombiano. Porém, mais do que irônica, a duplicidade das obras é de outra natureza, há nela uma espécie de flerte com essa sombra, ou com um abismo que se esconde entre os fundos geralmente chapados e a rotundidade das figuras.



Ao ter como assunto principal o o próprio quadro ou as cores que o compõem, por outro lado, a pintura de Botero como que reprime qualquer intenção social mais explícita, o que não impediu que, ao longo do tempo, surgissem leituras que vissem na “gordura” dos desenhos críticas às elites colombianas e nas bocas fechadas menções ao silêncio cúmplice dessas mesmas elites aos desmandos que imperam na América Latina. Leituras como essa vão além do que o artista sempre afimou sobre a própria obra. Afinal, “sou contra a arte como arma de combate”- afirmou ele.


Mas talvez essas interpretações apontassem para algo de que o próprio pintor não tivesse consciência. Dores da Colômbia, ao meu ver, desvela algo que se esconde em todo o percurso do colombiano. A mostra compõe-se de desenhos e pinturas produzidos entre 1999 e 2004. “Estes quadros são uma forma de repudiar a violência”- disse Botero. A coleção remete diretamente à guerra civil não declarada que se abateu sobre a Colômbia nas últimas décadas, com narcotraficantes, guerrilheiros e matadores de toda a espécie assolando a população civil.



Os massacres são representados em toda sua crueza, tendo como personagens as mesmas figuras “gordinhas” que há décadas vêm literalmente preenchendo as telas de Botero. Como sempre, as composições parecem posadas, marcadas por certa estaticidade, mesmo quando representam os atos mais dramáticos. Algumas delas resgatam algo do primeiro Botero, com um quê de expressionismo que depois se perdeu cada vez mais na obra do artista, em que a deformação foi ficando cada vez mais vazia e autossuficiente, em vez de dar conta de possíveis capacidades expressivas.



As mesmas cores vibrantes de sempre parecem, todavia, agora entrar em choque com a violência e a tristeza de cada quadro. E essa sensação sombria, de morte, que se escondia em Botero desde sempre, surge como motivo explícito de todas as obras a compor a mostra.



Os quadros são bastante repetitivos. Balas transpassam corpos, sangue espirra ou escorre de buracos abertos, mutilações se exibem (“Quiebrapatas”, “Sem título- 1999”), mães choram filhos mortos (“Uma madre – 1999”, “Uma madre – 2001”), a própria Morte cruza algumas composições na clássica forma de um esqueleto, ora munido de uma foice, ora portando a própria bandeira da Colômbia, ora simbolizando as vítimas (“Madre e hijo”), ora como um anjo exterminador (“La muerte em la catedral”, “El paisaje de Colombia”).



A reiteração das figuras e do assunto mesmo dos quadros iconiza uma violência que se repete cotidianamente. O exagero não é agora apenas dos volumes, mas das próprias situações, como em “El desfile”, em que uma procissão de diversos caixões segue sob o vôo de um abutre, ao lado de casas que se acumulam como um monturo.


Mas eis que aqui as bocas das figuras não estão mais fechadas. Finalmente abrem-se, mas encenando o rito da morte (“Sem título – 1999”, “Muerte ”), ou o terror (“Matanza de los inocentes”) ou a dor da perda (“Uma madre – 1999, “Mujer llorando”) ou o riso escarninho (“Viva la muerte”). É como se um vaso se destampasse, mas dele pudesse sair apenas tristeza e pranto.


Seria esse um Botero escondido desde sempre em Botero, como se uma pintura que sempre se colocasse à beira do abismo tivesse se curvado, de repente, sobre ele, procurando ver o que havia de mais fundo?


Mujer llorando (1999) - Óleo sobre tela

domingo, 20 de março de 2011

Desobediência cultural

O Globo de hoje, Caetano continua em dúvida se vai assinar o manifesto da “terceira via”. Enquanto isso, o assunto ganhou força nas redes sociais da internet. Mas ainda não se tornou “viral” , parece ser uma preocupação de guetos e não algo que interesse à sociedade toda.

Na imprensa mainstream o debate vai pipocando aqui e ali. Na Folha de segunda-feira, dia 14/03, houve um espaço maior para a discussão. Título da coluna de Ronaldo Lemos, no “Folhateen”, que se refere, entre outras polêmicas de Ana de Hollanda, ao imbróglio dos direitos autorais: “Ministra enfrenta fogo cruzado na internet”.

Sob o título “Divergência Afinada”, artigo assinado por Ana Paula Sousa e Marcus Preto abriu a “Ilustrada”, dizendo que

(...) parece que, enfim, alguns artistas da música brasileira se dispuseram a discutir, com clareza e sem dedos em riste, a questão da reforma do direito autoral no Brasil.

O artigo, que aborda a emergência da chamada "terceira via", faz uma ótima súmula do que está em jogo. Mas, como visto na transcrição acima, concentra-se mais na questão do direito autoral do que na do direito de acesso. Conclui com a informação de que, ainda nesta semana que se encerrou, os técnicos do MinC deveriam apresentar um parecer à ministra.

Na mesma edição, contudo, outro artigo, assinado pelos mesmos jornalistas, trás o outro lado da questão, ao afirmar que a lei vigente impõe entraves ao consumo cultural e pune atitudes – como a prática de downloads – que já fazem parte do cotidiano de grande parte da população.

Guilherme Varella, advogado do Idec (Instituto de Defesa do Consumidor) é trazido à cena, para lembrar que o Direito Autoral tem um “aspecto diretamente ligado à cidadania” e para anunciar que o instituto “ (...) está estudando entrar com uma ação contra entidades que assinam certas campanhas antipirataria”.

Ricardo Semler, na sua coluna do caderno “Cotidiano”, foi incisivo. Muito lúcido, lembrando Thoreau, coloca a compra ou download de CDs e DVDs piratas na categoria da desobediência civil:

Estudantes devem ser rotulados de cúmplices do crime organizado porque se recusam a pagar R$ 45 por um DVD de filme antigo que custa R$ 2 para produzir e distribuir?”
(...)
A verdade é que a era de ouro dos estúdios e artistas chega ao fim. Não cabe mais pedir que o mundo financie R$ 12 milhões por filme ao Tom Cruise ou que fique babando para os Roll-Royce dos rappers. Muito menos que financie cartéis de estúdios que conseguem, pelas leis vigentes, transformar policiais em capangas pelo lucro.
Ninguém vai defender as fábricas ilegais ou a pirataria intelecutal, mas urge perceber que o mundo mudou.
(...)
É aceitar que o mundo não é composto de acobertadores de traficantes , e sim de adolescentes e adultos inteligentes que não querem mais ser manipulados pelo Gaddafis da indústria de entretenimento. Acordem: 1 bilhão de downloads em 2010, antes mesmo que a banda larga de 10 mega seja corriqueira, é aula para qualquer empresário antiquado. Que criem vergonha na cara e se atualizem – 70,2 milhões de criminosos brasileiros, todos mal-educados, agradecem.

É isso aí, Semler! Ninguém está querendo mexer em centavos, mas nos milhões de uma indústria que perverteu o sentido do que é cultura e do que é arte.

Entendido isso, com certeza ninguém vai morrer de fome ou na ignorância dos biscoitos (finos ou grosseiros) que hoje são vendidos como mercadorias caras. O melhor antídoto contra a pirataria é o bom senso que está faltando a muita gente.

domingo, 13 de março de 2011

E a quarta via?


Mass Media. Em: http://olhares-inquietos.blogspot.com/2010_04_01_archive.html

Continua a briga em torno da reforma da lei de direito autoral.

A Associação de Autores de Cinema, que reune roteiristas como Adriana Falcão, Bráulio Mantovani e Marçal Aquino divulgou em 03/03/2011 carta de apoio à mudança da legislação. De acordo com O Globo de 06/03/2011, o presidente da Associação, David de França Mendes, declarou que:

A nova lei é um avanço de quem tem direito a receber, particularmente para diretores e roteiristas (...) Houve investimento para se chegar ao ponto a que se chegou. Não só do governo. Pessoas viajaram, gastaram tempo e dinheiro. A gente fica muito surpreso em ver pessoas do MinC dizendo que vão rever o processo para defender o autor quando era a nova lei que incluiria mais artistas na distribuição dos direitos.

De outro lado, um grupo de diversos artistas – entre eles, gente dos mais variados espectros, como a poeta e letrista Alice Ruiz, a compositora Cristina Tavares e os músicos Jair Rodrigues, Ivan Lins, Luciana Mello, Ná Ozetti e Tim Rescala, além de entidades como o Sindicato dos Músicos Profissionais do Rio de Janeiro e a Associação Brasileira de Música Independente (ABMI) - lançou na última semana um documento que propõe a reabertura da discussão. Uma “terceira via” aos debates até agora travados. Ou seja: nem contra nem a favor do projeto “sequestrado”, mas pedindo mudanças na legislação vigente, o grupo lista diversos aspectos que considera importantes e não são contemplados nem na lei atual nem no projeto que Ana de Hollanda puxou de volta para o MinC.

Até Caetano Veloso, n´ O Globo de hoje, lembrando-se “totalmente terceiro sexo, totalmente terceiro mundo, terceiro milênio” declara-se tentado a subscrever o manifesto da “terceira via”! Afinal, diz ele, “ o Mautner de Hermano e o meu são a mesmíssima pessoa”. A declaração tem a ver com o fato de a já famosa frase de Caetano – “ninguém mexe em um centavo de meus direitos” – ter surgido como uma citação de Mautner, que parece ter sido mencionado também por Hermano, em texto a que ainda não tive acesso, entre as “hostes libertárias”.

O caminho proposto é legítimo e sadio. Muitos o trilharão de boa fé, interessados numa solução realmente cidadã. Mas certamente no meio haverá também a turma da protelação, do “quanto mais enrolado melhor”. Numa discussão democrática não há como fugir disso.

Enquanto isso, até a última notícia, a ministra vinha sem receber os músicos interessados na questão, inclusive os componentes da chamada “terceira via”. Segundo o Correio Braziliense de 11/03/2011 – em reportagem que traz reclamação de Tim Rescala a respeito de Ana de Hollanda não recepcionar os artistas, mas atender representantes do ECAD - , a ministra teria declarado que:

A equipe vai ler a lei em vigor, vai ver esse projeto de lei que ninguém conhece bem e vai ouvir a demanda de todos em relação aos direitos autorais.

Essa fala provoca diversas dúvidas: quem é a equipe? quem ela representa? quem é o “todos” que vai ser ouvido? como e quando? e qual a composição desse “ninguém”, a desconhecer o projeto, depois de tantos paineis, de alguns meses de exposição na internet e com tantos se julgando aptos a apontar as suas falhas e virtudes? Na realidade, tendo em vista as necessidades de mudanças, o debate público deveria ter sido ainda mais intenso do que foi. Mas "ninguém" soa meio exagerado. A bem da racionalidade da discussão, hipérboles deveriam ser momentaneamente deixadas de lado.

De novo, o debate parece se concentrar mais numa briga de compadres, sem voz para o público. Continua o vício de se falar apenas em direitos autorais (com uma preocupação subliminar com relação a todos os intermediários possíveis), sem um engajamento mais amplo com a questão da circulação da cultura, num tempo como o nosso e numa sociedade com as carências da brasileira. Não vejo manifestação, por exemplo, de consumidores de livros e músicas.

Se é difícil organizar a massa em torno de uma questão como essa, creio – talvez um tanto idealisticamente - que Universidades, Associações de Pais e Alunos, Sindicatos de Professores, entre outros, teriam um papel a cumprir nisso.

E por que não as chamadas redes sociais na internet?

quarta-feira, 9 de março de 2011

Direitos de circulação da cultura


Creative Commons Superman.

Uma discussão que interessa a muitos

Nas últimas semanas, tenho acompanhado as discussões motivadas pela retirada da menção à Creative Commons na página do Ministério da Cultura e pelo recuo do mesmo Ministério no que se refere ao encaminhamento de uma nova proposta de legislação sobre os direitos autorais. Participaram do debate – travado principalmente nas páginas de O Globo, mas que depois se derramou por outros veículos - nomes muito representativos, como Hermano Vianna, Caetano Veloso, Gilberto Gil e José Miguel Wisnick, dentre outros.

Num campo extremamente mediado como é o da cultura na atualidade, são muitas as vozes a quem interessa esse diálogo - algumas mais, outras menos conscientes disso. Há as dos autores, daqueles que produzem cultura. Há aquelas dos múltiplos intermediários, que vão desde editores e representantes de gravadoras, até críticos culturais e advogados especializados em direitos autorais. Todos esses vivem ou almejam viver da cultura. Mas há também as vozes daqueles que menos se fazem ouvir, os consumidores de cultura, ativos ou potenciais, que, ao fim e ao cabo, são os que devem pagar a conta. É desse lugar que procurarei falar aqui.

A menção à Creative Commons fora colocada na página do Ministério na época de Gilberto Gil ou na de Juca Pereira, não importa. A retirada, na gestão Ana de Hollanda, foi compreendida por muitos como um retrocesso e uma declaração de guerra. Outros defenderam o gesto como uma posição madura e avessa ao que seriam modismos próprios de intelectuais deslumbrados com a cultura digital.

Caetano Veloso, em sua coluna dominical, tem abordado continuamente o assunto, na busca de inventivar o debate, propondo-se, ao mesmo tempo, um mediador imparcial e um defensor do direito de autor. “ Ninguém toca em nem um centavo dos meus direitos” – disse ele, em certa altura, assumindo posição que foi interpretada por muitos como conservadora.

A Folha de S. Paulo teve uma reação um pouco retardada em 22 de fevereiro, quando publicou, na primeira página da Ilustrada, matéria com o título “Duelo de compadres”, em que contrapõe entrevistas com Caetano e com Gilberto Gil, enfatizando as diferenças de posições entre ambos. O texto é encabeçado por uma foto do primeiro com ar raivoso, a gesticular. Ao pé da página, outra imagem, agora de Gil, mostra o cantor a empunhar uma guitarra, também com expressão crispada. Uma maravilha de montagem jornalística.

O artigo da Folha, embalado por uma visão muito comum, induz o leitor a julgar que as Creative Commons se contrapõe ao copyrigt. Mas será isso mesmo?

A falsa questão da Creative Commons

Creative Commons (CC) é uma organização não governamental, sem fins lucrativos declarados, com sede nos Estados Unido. Essa origem gringa tem sido uma das fontes de desconfiança de alguns dos seus críticos no Brasil. Ao usar as licenças geradas pelo sistema, qualquer autor preautoriza diferentes graus de intervenção e de compartilhamento da obra por parte de todos os possíveis usuários.

Criam-se, assim, potenciais “aberturas” no tradicional sistema de copyright, principal regulador dos direitos de autor em todo o mundo. No copyright, a reprodução ou uso de qualquer trecho de uma obra depende, caso a caso, da prévia e expressa autorização de quem a criou. Em outras palavras, pressupõe-se que “ todos os direitos são reservados”.

Sem questionar propriamente a base do copyright, as Creative Commons estabelecem um contrato privado entre o autor e o seu público, sob a guarda dessa legislação mais ampla e restritiva. As licenças do tipo CC preservam, assim, o “direito moral” do autor, aquele que “autoriza”, previamente e em caráter geral, uma restrição dos seus direitos econômicos, ao permitir a cópia e compartilhamento. Em alguns casos, as licenças liberam também modificações na obra.

Usei, no parágrafo anterior, o verbo “autorizar” de modo intencional. Não se pode esquecer nunca que “autorizar” e “autor” têm a mesma raiz. Assim, pelo mesmo teoricamente, as Creative Commons não ofendem a autoria, a autoridade do criador sobre aquilo que produziu, bem como não propõem o fim do “copyright” como um princípio geral, mas permitem que cada autor, de motu proprio, generalize licenças prévias para casos específicos.

Note-se que grafo “Creative Commons” com iniciais maiúsculas e “copyright” com minúscula. Nisso não vai nenhuma defesa de uma pretensa superioridade da primeira sobre o segundo. Também no fato de eu falar “a” ou "as" Creative Commons e “o” copyright” não há engano ou machismo embutido, ao tentar sugerir subliminarmente uma possível superioridade do segundo. Apenas contraponho “uma” licença particular, correspondente a uma marca (por isso, as maiúsculas, como em Google ou Facebook), a “um” princípio jurídico aceito universalmente (ou quase), ambos padecentes das mesmas limitações diante da realidade.

Compreendo a carga simbólica que há na exclusão da marca da Creative Commons da página de um Ministério que até ali vinha defendendo, em diversos foruns, a flexibilização dos direitos de autor, diante da realidade da nova cultural digital. Todavia, dado o caráter particular da licença, que não se coloca nunca como um princípio universal, confesso que, desde o início, fiquei sem entender a importância, a meu ver excessiva, que se deu a esse gesto.

Em um dos artigos que dedicou ao tema, Wisnick também apontou esse “ponto cego” no discurso de Caetano e dos oponentes da Creative Commons:

(...) Caetano passa do princípio liberal da livre expressão para o princípio liberal da livre competição, assegurado historicamente ao proprietário das matrizes na época da ´repetição´(´ninguém toca em um centavo dos meus direitos´). Por um motivo a ser esclarecido, no entanto, os defensores corporativos da universalidade dos direitos autorais veem a livre flexibilização, por aqueles autores que assim o queiram, e para o universo de suas próprias obras, como uma ameaça à universalização daqueles direitos. Esse é um foco gerador de mal entendidos e de fantasmas que o estado atual da discussão terá que ultrapassar.

Ou seja, por que a bronca contra a Creative Commons – ou por que a defesa acirrada dela - se, pelo menos até prova em contrário, ela não coloca em risco o princípio geral do copyrigt ou se apresenta como uma alternativa forte a ele? Não pode ser mera incompreensão. Acredito mais que se ataquem as licenças como se ataca uma bandeira inimiga.

Caetano aponta aquilo que enxerga como ingenuidade nos defensores da Creative Commons:

Por outro lado, de todas as coisas que li numa entrevista de Gil, a que mais me deixa embatucado é assertiva de que o autor deveria preferir decidir sozinho sobre como quer, em cada caso, licenciar suas obras. Ora, se é assim, ele terá que, por conta própria, rastrear os caminhos dos proventos advindos dos direitos. Sem sociedades nem ecads que intermedeiem. Será isso confortável? E mesmo viável?

Mas essa dificuldade de rastrear e fiscalizar não será a mesma que se observa no caso das obras geradas sob copyright pleno, em um mundo em que a internet ganha cada vez mais espaço e em que a capacidade de reprodução técnica cresce avassaladoramente a cada ano? Os “ecads”, para usar o termo de Caetano, não seriam – para ficar numa imagem desgastada, mas poderosa - como anões encarregados de tapar apenas com seus curtos braços os buracos que se abrem diariamente numa gigantesca represa?

A Creative Commons, ao permitir tão somente licenças voltadas para a reprodução e compartilhamento gratuitos, ao colocar possíveis restrições apenas quanto ao uso comercial das cópias ou quanto à modificação da obra de origem, assume, como princípio, a impossibilidade de tapar a represa com os bracinhos curtos do anão. Em outras palavras, parte do princípio de que eventuais receitas de um produto intelectual não serão originadas do consumo direto.

As fissuras na represa são representadas pela pirataria, pelos downloads ilegais, pelo compartilhamento de arquivos em redes do tipo P2P, todos aqueles caminhos de que os consumidores de cultura lançam mão para obterem mais barato ou mesmo grátis conteúdos a que, às vezes, sequer teriam acesso se não fosse por esses meios.

Se um autor acredita que se possam conter os vazamentos ou, pelo menos, que é honroso e lucrativo tentar fazê-lo, se quer preservar o seu direito ao esperneio, então pode manter a sua criação nos limites do copyright pleno.

Gil versus Caetano? Em: http://ecosdotelecoteco.blogspot.com/2011/02/polemica-entre-amigos.html

A verdadeira questão


Assim, o que está em jogo, no fundo,quando se grita contra a Creative Commons – embora de forma um tanto quanto irracional -, é como controlar downloads e compartilhamento de arquivos - e como receber por eles. O direito moral do autor não é afetado pelas fissuras da represa. Pelo contrário, elas são como outros tantos arautos da fama.

Se os trágicos gregos contentavam-se com uma coroa de louros, os autores contemporâneos, em sua maioria, não querem abrir mão de “nenhum centavo de seus direitos”. A briga não é contra outros autores (terreno em que as Creative Commons poderiam teoricamente estabelecer alguns limites), mas contra consumidores (caso em que licenças especiais, por mais que estabeleçam gradações de cópia, esbarram sempre na mesma incapacidade de fiscalização que assola do direito de autor convencional).

Não há como lutar contra o vínculo entre mercado e cultura. A própria luta, na maioria das vezes, vira mercadoria (é só pensar em todos os artistas malditos que viraram marcas rentáveis). Para o pensamento livre e para a liberdade criativa, foi bom os artistas se livrarem dos mecenas, bem como foi imprescindível que se aprimorassem os mecanismos de arrecadação dos proventos pagos pelo público. Artistas e intelectuais que não dependam do Estado ou de corporações, mas que possam gozar de “ócio criativo” são fundamentais para a fertilização da cultura. O copyright foi importante nesse sentido, ao aliar direitos econômicos aos direitos morais sobre a obra.

O que acontece na atualidade é que os mecanismos laboriosamente desenvolvidos ao longo dos últimos três séculos (a primeira lei do copyright data de 1709), que pareciam tão sólidos, estão rapidamente se desmanchando no ar (a referência a Marx aqui não é de graça), enquanto artistas, distribuidores e responsáveis pela fiscalização batem as cabeças, sem saber o que fazer.
Os intermediários veem os seus modelos de negócio se esboroarem, enquanto os produtores se assustam ao não encontrarem mais firmeza nas confortáveis redes de arrecadação com que contavam antes (ainda que pudessem reclamar muito delas). Os consumidores, do outro lado, se empaturram de um mingau que veem jorrar grátis, sem se preocupar muito se vão matar de fome as suas vacas sagradas.

Desse modo, no contexto atual - marcado por acelerada depreciação de tecnologias e modelos de negócio e pela chamada convergência das mídias - brigar por Creative Commons ou pelo copyright sem restrições é fazer, de certo modo, o papel daqueles cães que deixaram a caravana passar. É não perceber – ou fingir não perceber – que uma série de outras questões está sobre e sob a mesa. E muita coisa importante está sendo colocada debaixo dela.

Na realidade, a questão cerca-se de aspectos mais importantes, do ponto de vista da sociedade, do que os supostos direito e possibilidade real ou imaginária de um indivíduo determinar os limites de uso de sua obra. E muitos desses aspectos, aqueles que interessam mais diretamente aos cidadãos de modo geral, quais sejam os que remetem ao direito de acesso à cultura, estão sendo negligenciados ou pelo menos colocados num plano secundário no debate atual.

Apesar de legítimo, pensar apenas nos autores e nos sistemas de distribuição e de fiscalização não deixa de se carregar de um particularismo muito egoísta. Até por conta de quem são os debatedores, tem-se privilegiado, nos artigos de jornal que servem de pano de fundo a esta postagem, a questão da música, sob a ótica de seus produtores. Uma discussão política de alcance mais ampla viu-se reduzida, assim, em certos momentos, a um Fla-flu pró ou contra ECAD.

Quando se fala em produção de cultura, não se pode esquecer a outra ponta da cadeia, onde não há apenas um consumidor stritu senso, mas um cidadão, um homem, uma mulher. O direito de acesso à cultura deveria ser tratado sempre como inalienável. E esse é um dos pontos que, muitas vezes, tem sido colocado em segundo plano nos debates atuais.

Falar de políticas públicas (expressão, na verdade, redundante), nesse sentido, deveria sempre ser uma proposta de mediação entre os direitos do autor (morais e financeiros), de um lado, e os direitos de acesso, do outro. Os direitos de quem está no meio do caminho (gravadoras, editoras, cadeias de distribuição) não podem e não devem esquecidos, mas são sempre subsidiários, não por serem menos importantes, mas por somente existirem enquanto assegurarem aqueles outros.

Por isso, acredito que mais do que falar em direitos autorais, de intermediários ou de consumidores de cultura, deva-se falar em direitos de circulação da cultura.

A importância da legislação


Cartaz. Em: http://www.cultura.gov.br/site/2008/02/22/noticias-do-forum-nacional-de-direito-autoral/

Na realidade, a sociedade encontra-se hoje, no caso desses direitos, diante de um evidente problema de economia política, que coloca em xeque mecanismos históricos de financiamento e comercialização. É ridículo, embora às vezes comovente, fazer o papel dos copistas que foram contra a imprensa ou o dos ferradores de cavalos que brigaram contra os automóveis. Simplesmente não dá para imaginar que as coisas tenham de ficar como eram há décadas. Não se pode, de maneira legítima, tentar fazer crer que os atuais modelos sejam ahistóricos, perfeitos.

O que acontece hoje é apenas a atualização de embates que já se fizeram presentes no passado. O conflito entre o direito de acesso e os direitos financeiros, quer do autor, quer dos intermediários, é antigo. No século XVIII, Diderot e d´Alembert, os pais da Enciclopédia, escreveram opúsculos sobre a questão, colocando-se em campos opostos, como, de certo modo, Caetano e Gil hoje. O que se discutia então não era a comercialização de músicas e canções, como agora, mas de livros. Diderot colocou a sua pena a serviço não dos autores, mas dos livreiros. No caso francês, os autores vendiam seus direitos para o livreiro a um preço fixo, como um artista que vende uma obra de arte irreproduzível para alguém, que a partir desse momento tem o direito de revendê-la pelo maior valor que conseguir. Por isso, não tinham de se preocupar com cópias piratas, mas o livreiro sim. D ´Alembert, por sua vez, militou a favor do direito irrestrito de acesso dos leitores às obras de cultura e, por isso, defendeu aquilo qie hoje chamamos de pirataria, como um mal necessário.

Dentre os debatedores que se têm debruçado sobre o assunto pela imprensa nos últimos tempos, um dos que me parecem ter buscado uma posição verdadeiramente mais isenta e historicamente situada é José Miguel Wisnick, em sua coluna semanal n´O Globo. Num dos artigos, em 05/02/2011, recorreu às ideias do economista francês Jacques Attalli para localizar os atuais embates num momento em que as tecnologias de simples reprodução estão sendo colocadas sob a égide daquelas de comunicação.

"As transformações, quando se dão em música, antecipam transformações que vão se dar em toda a sociedade” – diz Wisnick, ecoando Attalli. Depois de três grandes momentos históricos da produção musical, o do “sacrifício”, o da “representação” e o da “repetição”, estaríamos entrando num quarto momento, o da “composição”, marcado por um processo de transautoria:

Hoje me parece claro: mudanças técnicas decisivas alteram a economia política da música, o modo de produção e de difusão dos sons, e o lugar dos seus detentores. A verdade é que a digitalização, o armazenamento universal, a copiagem instantânea e inumerável, as possibilidades de processamento e reprocessamento, dando um sentido inesperado à palavra "composição", têm efeitos concretos e inevitáveis sobre o destino dos sons. A acreditarmos no autor de Bruits, tem efeitos concretos sobre o destino de tudo, já que a música tem o poder de anunciá-los.

Essas mudanças são as incontroláveis fissuras na represa. Mas, além dessa abordagem que ele chama de “excessivamente panorâmica”, Wisnick sinaliza um outro – e necessário - exercício de contextualização, focado nas mudanças políticas e culturais brasileiras das últimas décadas, embora não chegue a aprofundá-lo.

Em 26/02/2011, voltou ao assunto dos direitos autorais, colocando-o não apenas no quadro de redefinição das políticas culturais proposto pela nova gestão do Ministério da Cultura, mas, numa abordagem histórica de médio alcance, como uma espécie de retomada daquilo que ele chama de “debate interrompido em 1968”. A atualização desse debate, parece, tem tanto a ver com a oposição entre liberalismo e papel do Estado como fomentador cultural, quanto com diferentes visões políticas a respeito de como esse mesmo Estado pode atuar como agente e legislador cultural.

A menos que se faça refém de grupos, o Estado deve assumir o papel de mediador numa transição histórica como a que acontece nesse momento, garantindo o diálogo entre os direitos advindos da produção cultural e aqueles mais universais, referentes ao pleno acesso.

Por que, por exemplo, impedir que alguém “pirateie” uma obra não disponível de outro modo – por exemplo, uma edição esgotada ou que não circule no local em que a pessoa mora? Por que privar uma geração inteira de ter contato com a produção de um autor porque os seus herdeiros brigam entre si ou com uma editora ou gravadora? Aqui no Brasil, foram os casos de Monteiro Lobato, Guimarães Rosa e Paulo Leminski, apenas para ficar em uns poucos e significativos exemplos. Isso sem contar os casos burros, em que filmes como Amor, estranho amor, de Walter Hugo Khouri, ou livros como A estrela solitária e Roberto Carlos em detalhes, por diferentes motivos, ficam fora de circulação, sobrestados pelo Judiciário. Todos esses são casos em que direitos privados se sobrepuseram aos públicos.

Por outro lado, por que hoje pagar escorchantes R$ 40,00 ou R$ 60,00 por um DVD em lançamento ou por um CD importado, se os novos meios de distribuição permitiriam que chegassem bem mais baratos, podendo atingir potencialmente uma audiência mais ampla, se os modelos de negócio se ajustassem à nova realidade?

Num cenário de mudanças aceleradas como o atual, a menos que acreditemos que uma nova racionalidade vai emergir naturalmente da confusão e que exista uma “mão invisível do mercado” capaz de amarrar todas as pontas soltas e desatar todos os nós, o papel do Estado, como legislador e como fiel da balança, sobressai. Como esse papel pode ser exercido sem que se transforme em tutela é uma questão chave.

A importância de atualizar a legislação a respeito da circulação cultural (hoje “legislação sobre direitos autorais”) avulta nesse cenário.

Aqui se lembre que a ministra Ana de Holanda, mais do que retirar a menção à Creative Commons da homepage do MinC, sustou a tramitação de um projeto de lei sobre os direitos autorais que vinha sendo discutido há cerca de quatro anos nas gestões anteriores e que já estava na Casa Civil para ser encaminhado ao Congresso. Esse, sim, parece um gesto substantivo, que precisa ser analisado com cuidado. As Creative Commons só funcionam – ou não – sobre o pano de fundo de uma legislação mais ampla. E é a discussão sobre a atualização desse substrato legal, evidentemente obsoleto, que não pode ser escamoteada.

Transparência é necessária

Não havia consenso sobre o projeto que a ministra retirou para vistas. É inegável, todavia, que passara por um amplo debate, talvez o mais amplo possível, em se tratando de um assunto que não desperta muitas paixões populares. Foram cinco congressos e dois foruns, reunindo especialistas nacionais e estrangeiros, num processo que se iniciou há anos e que culminou numa consulta pública, com mais de oito mil sugestões.

A pergunta que se faz é como se processará a revisão que agora se propõe. No escuro dos gabinetes? Ao longo da semana, circularam rumores de que a nova diretora de Direitos intelectuais do MinC, Marcia Regina Barbosa, seria indicada por um advogado do ECAD. Isso pode ser mentira, mera manobra para “queimar o filme” de uma servidora pública isenta. Mas os boatos são parte do preço que se paga pela falta de clareza na condução de determinados assuntos.

A legislação que se debate não é do interesse de poucos, mas de toda a sociedade brasileira. Urge trazer de novo a discussão para foruns mais amplos. Se a ministra realmente quiser mostrar transparência, é importante que divulgue, o mais rapidamente possível, um plano de ação nesse sentido.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

A praça ampliada

A ágora grega na visão de "The Age of Pericles", de Philipp von Foltz, de 1853
Tem sido muito destacado pela imprensa o papel das redes sociais nos movimentos populares que recentemente se espalharam pelo Oriente Médio, colocando em xeque antigas ditaduras. No caso do Egito, chegou-se a falar de uma autêntica “Revolução do Facebook”.

Interessante, nesse aspecto, é o que diz em depoimento publicado pela Folha de S. Paulo em 22/02/2011 o egípcio Ahmed Maher, um dos principais líderes da revolução que depôs Hosni Mubarak – e o responsável pela página do Facebook que deu origem ao Movimento 6 de Abril:

O Wael Ghonim [executivo do Google que participou de protestos] é meu amigo, mas discordo quando ele diz que essa éa revolução do Facebook. Ele entende de tecnologia, mas não de política. A internet é só uma ferramenta. O que fez a revolução foi a vontade de mudar e a disposição de fazer sacrifícios.

Uma declaração simples, mas que coloca os pingos nos “iis”. Sem negar o papel da internet no que vem acontecendo, é um exagero atribuir à rede mundial o papel protagônico que alguns lhe procuram dar. Os protagonistas são os homens e mulheres que trabalharam por uma ideia e os milhares de cidadãos que saíram às ruas.
A praça pública em que se travavam os debates a respeito da polis - a ágora - teve um papel importante na constituição da democracia grega. A imprensa esteve no centro das revoluções liberais do final dos séculos XVIII e XIX, sem que a praça e as ruas perdessem o seu lugar como campo de debates e embates.

O garoto Gavroche, mártir das barricadas, na pintura de Delacroix A Liberdade guiando o povo

A internet agora simplesmente vem ocupar o seu lugar nesse movimento histórico de ampliação do espaço público. Atribuir-lhe um papel inédito é uma forma de fetichismo e um desconhecimento da história. Cada vez mais é possível, do ponto de vista tecnológico, discutir a política sem a copresença física de todos os cidadãos. Mas ainda é na praça física que desaguam e ganham corpo os debates e convocações, quer se originem no boca a boca, na imprensa ou na internet.

A praça pode ser o lugar dos tanques ou do povo. A imprensa pode ser o espaço do pluralismo democrático ou do pensamento único, quando subjugada pela censura. A internet pode acelerar o fim de regimes podres ou servir de instrumento para os fortes. Mas é não é ela que está fazendo a revolução árabe. Homens e mulheres, na sua condição de cidadãos, é que sempre farão a diferença.

O povo egipcio na praça. Em: http://www.wscom.com.br/noticia/internacional/GOVERNO+DO+EGITO+PROIBE+MANIFESTACOES-100494

domingo, 13 de fevereiro de 2011

De novo, o grande bla bla blá

O caderno “Ciência” da Folha de S. Paulo , em 11 de fevereiro, trouxe reportagem com o título “DNA individual tem mais dados que todos os HDs”. A matéria reporta-se a artigo publicado na revista Science, que analisou os dados produzidos e armazenados entre 1986 e 2007, tanto em meios analógicos (livros, fitas VHS, discos de vinil, etc.) quanto digitais (HDs, CDs, DVDs, dentre outros). Os cientistas chegaram à conclusão que em 2007 todos os dados armazenados pela humanidade chegaram ao montante de 295 exabytes (ou 295 bilhões de gigabytes). Isso equivale, ainda segundo a reportagem, a 314,1 bilhões de músicas em MP3 ou a um 1,8 bilhão de horas de vídeo com qualidade de DVD. Disso tudo, 94% estariam armazenados em formato digital.

A matéria não dá muitos detalhes sobre o grau de redundância que há nisso tudo, isto é, quanto do material analisado não seria mera cópia de outros dados. Diz apenas que “ (...) devido à grande quantidade de fontes, os pesquisadores não se preocuparam se as informações eram inéditas ou repetidas”. Informa, todavia, que “(...) para uniformizar a medição, os cientistas fizeram algo parecido com os softwares de compactação de arquivos – como os do tipo ZIP: diminuíram o tamanho dos arquivos retirando os trechos redundantes das mensagens”.

Em outras palavras, aplicada essa metodologia, os bytes de poemas como “No meio do caminho” de Carlos Drummmond, ou “Kipling revisitado”, caracterizados justamente por uma alta repetição vocabular, necessariamente são muito reduzidos. Um plágio deles, por outro lado, é considerada informação nova.

De qualquer modo, desconsideradas as limitações naturais que há em qualquer abordagem meramente matemática da informação, os números levantados são acachapantes. Minha pobre cabeça não consegue lidar com eles. Todavia, ainda assim, sempre de acordo com a mesma reportagem, há cerca de cem vezes mais informação codificada no DNA humano que em todos os sistemas de armazenamento criados até 2007. Mantida a atual taxa de crescimento, apenas por volta de 2039 a humanidade conseguiria atingir a marca que a natureza imprimiu ao DNA.

Vejam só o espanto: se, até a mesma data, uma equipe de bioinformática conseguisse transcrever, na forma de um programa de computador, as mesmas informações contidas no DNA, tal programa teria tanta informação quanto toda aquela que os pobres homens teriam conseguido armazenar até então! Decodificar todo o genoma humano seria, então, fazer um mapa borgeano, tão completo que pode não servir para nada?

A respeito disso, a Folha informa que "(...) os cientistas ainda debatem se toda a informação contida no DNA humano é fundamental para construir e mantero organismo. Pesquisadores propuseram o conceito de ´DNA lixo´, resquícios no genoma que não serviriam para nada, mas ele tem sido bastante atacado".

Vejam só. Esse "lixo" é redundância ou informação supostamente inútil, "ruído". Como saber? As repetições vocabulares de Drummond e Paes contribuem para dar vida aos seus poemas. Sem elas, a mensagem se perde. Como dar conta disso, de verdade? No meio de tantos dados do DNA, como fazer a exegese "correta"?

Em 23 de março de 2009, portanto há quase dois anos, estimulado por uma nota rapidamente lida na publicação de bordo da TAM, publiquei um comentário sob o título “O grande bla bla blá”. Naquela ocasião, dizia-se que toda a informação digital a ser produzida até 2010 deveria equivaler a 75 pilhas de livros entre a Terra e o Sol. Agora, o artigo da Folha fala que, se toda a informação produzida até 2007 fosse colocada em uma pilha de CDs, ela equivaleria à distância da Terra à Lua. Quem tiver tempo, pode confrontar os dados, para verificar se “batem”...

Nessa coisa toda, não se computaram os bilhetes em portas de geladeira, os recados com batom nos espelhos de banheiro, os poemas xerocados distribuídos em portas de teatros, as cartas dos suicidas, os CDs riscados que alguém vai recuperar, as pobre gravações que candidatos a artistas sertanejos vendem nos botecos de Brasília.

"É o primeiro trabalho a quantificar como seres humanos lidam com a informação". Segundo a Folha é o que teria dito Martins Hilbert, da Universidade da Carolina do Sul, líder do estudo. Interessante, sem dúvida. Esse não deixa de ser o velho e bom sonho da Teoria Matemática da Informação. Mas é preciso qualificar também como esses mesmos seres humanos lidam com essa informação - inclusive como apanham dela, como se perdem em seus meandros e ainda como do lixo fazem brotar obras de arte e conhecimento novo. E esse é um trabalho de Sísifo.

Dá um certo cansaço. Sei agora que meu quinhão em todos os dados armazenados pela humanidade equivaleria a cerca de 61 CDs. Como tenho pelo menos vinte vezes isso, sem contar DVDs, livros e acesso à Internet banda larga e à TV a cabo, sou uma pessoa bem informada? Por que diabos não escrevi, então, um novo Ulisses?

Num CD do Sérgio Mallandro, se eu o tivesse, encontraria tanta informação quanto num LP, digamos, de John Coltrane ou da Badi Assad?

Acho que vou ler o último livro do Gullar. Ou um haikai de Bashô.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

A falsa gueixa e o marginal

Cartaz de Helio Oiticica - Museu é O Mundo

No último final de semana, visitei duas exposições em Brasília: Hélio Oiticica – Museu é o Mundo e Mariko Mori – Oneness. Ambas são marcadas pelo ineditismo. De acordo com a imprensa, a mostra de Hélio é a maior já organizada no Brasil e a primeira que chega à Brasília. É importante também porque, de certa forma, tem um ar de ressureição, depois do susto que todos os que gostam de arte tiveram ao saber do incêndio do acervo do artista no Rio de Janeiro, ocasião em que se chegou a temer pela perda da maior parte de sua produção. No caso de Mariko, que vem ganhando cada vez mais relevância no circuito internacional, trata-se de sua exibição inaugural no país.

Mas não é apenas o que têm de inédito que as aproxima. As duas buscam provocar algo mais do que a mera contemplação, transformar quem as visita em algo além de mero expectador. Nisso não há nada de novo, a procura por diversos graus de interatividade tornou-se um quase lugar-comum das artes há muito tempo. Mas diante dessa constatação, talvez seja interessante pensar nas diferenças que marcam esse encontro com o público nos dois casos.

Oneness, que ocupa vários espaços do Centro Cultural Banco do Brasil, antes de seguir para outras capitais brasileiras, é composta de dez instalações, além de vídeos e fotografias. As instalações são futuristas, impressionam pela tecnologia e pelo excelente acabamento. Os vídeos têm alta definição, são bonitos, extremamente contemporâneos em sua qualidade técnica. A cultura pop japonesa atravessa tudo, cruzando-se com um budismo com muito de new age nas obras mais recentes.

Confesso que as mais antigas é que me falaram mais. Em fotos como Tea Ceremony III e Red Ligth, ambas de 1994, ou Empty Dream, de 1995, Mariko – ex-modelo – posa como figuras femininas saídas de algum mangá, nos dois primeiros casos, ou como uma sereia de ar futurista e articial, no último. As composições são saudavelmente irônicas. Empty Dream retrata uma praia artificial, em que a Mariko-sereia refestela-se numa pose também artifical à frente de um barrigudo senhor japonês que filma o fotógrafo ou quem contempla o quadro. Um mundo de plástico e poses que fala para os olhos e para o cérebro, trazendo à vista mensagens com códigos deslocados.

Os materiais sintéticos e o artificialismo das cores penetram também os vídeos e as instalações, gestadas numa fase posterior da artista, mas aqui a ironia me parece esgarçada, subsituída pouco a pouco por um anseio de unicidade (afinal, a psicanálise já nos ensinou que o irônico depende sempre de uma cisão). Futuro e passado buscam uma atemporalidade mítica que se concretiza, por exemplo, em Transcircle, um círculo céltico, em que pedras são substituídas por vidro brilhante, culminando nas instalações Wave UFO, de 1999/2002 e Oneness, que dá nome à exposição.

A primeira é uma espécie de nave espacial (ou baleia primeva?), que recebe três visitantes por vez. Elétrodos capazes de ler ondas cerebrais são colocados em suas cabeças, traduzindo-as em gráficos que são projetados no teto, representando estados mentais. A leitura da obra depende, então, de um código de cores que representam esses estados. Se todos estiverem bem zens, as cores entram em ressonância.

Oneness, por outro lado, é formada por um conjunto de seis figuras humanoides dispostas em círculo (que juntamente com a esfera são formas recorrentes em toda a exposição) confeccionadas em technogel – material entre o sólido e o líquido e que imita, até certo ponto, a textura de tecidos vivos – que podem ser tocadas pelos visitantes, que então sentem um coração articial bater e podem ver os olhinhos dos robôs se acendendo. Se todas forem tocadas ao mesmo tempo, a instalação inteira se acende. O fato de os visiantes precisarem se ajoelhar para interagir com os humanoides pode servir a várias interpretações.

Os monitores pedem cuidado durante a interação. Afinal, os humanoides são sensíveis e devem ter custado muito caro.

A Revista Bravo traduziu Oneness por "Singularidade". Não me parece que Mariko busque o "Singular", mas o "Único", a noção de unicidade e plenitude que se estampa nesses círculos e nas esferas que se repetem nos vídeos e instalações.

Mas há um excesso de codificação nisso, o que é reforçado pela distribuição de senhas para que os visitantes possam interagir com as obras. Antes daquele deslocamento que se observa nas obras mais antigas, o que se vê aqui é uma necessidade dos códigos – do budismo, da cultura pop, dos panfletos, da fala dos monitores – como uma condição mesma para a interpretação.

Por outro lado, Helio Oiticica – Museu é o o Mundo, compõe-se de uma retrospectiva de toda a jornada do artista brasileiro, começando pelos metaesquemas dos anos 50, passando pelos bólides, núcleos, parangolés, chegando aos penetráveis, essas instalações de grande porte, que precisam de amplos espaços para serem montadas.

Depois de passar pelo Paço Imperial no Rio de Janeiro e pelo Itaú Cultural em São Paulo, a mostra espalha-se agora pelo Museu da República e se excede na Rodoviária, na Funarte e na Casa da Cultura da América Latina, onde também se expõem algumas instalações. Visitei apenas a parte que está no Museu da República.

Não existe aqui o fino acabamento das obras de Mariko, há rebarbas e sujeira, água, areia e pedras como elementos essenciais dos penetráveis. O que se expõe não parece querer falar seja de atemporalidade ou de eternidade (essas duas pontas que se tocam), como acontece na exposição de Mariko, mas de uma precariedade viva, que encontra eco nos vídeos com um ar antigo e rasurado que se integram à mostra. Os objetos-ideia de Oiticica não querem falar aos olhos e à mente, mas mergulhar aqueles que os usam em um festim de sentidos em que o tato e o movimento ocupam um papel relevante. E os parangolés não precisam de folhetos com instruções para serem interpretados, não precisam de interpretação, mas de serem incorporados num jogo entre o corpo e uma forma que resiste a ser única, mas se desdobra em possibilidades no espaço. Mais que usar códigos para promover a interação, mais que deslocá-los, Helio propõe ao público romper com eles. Há mais Dionísio que Apolo aqui.

Se em Mariko o passar do tempo parece ter reforçado a importância dos códigos para a construção de sua obra, em Hélio Oiticica percebe-se uma trajetória de crescente desconstrução deles entre os metaesquemas e os penetráveis.

Helio morreu em 1980, uns bons anos antes de Mariko começar a produzir. Todavia, os dois conjuntos me parecem tão contemporâneos quanto, embora de modos perversamente diversos. Quando olho os vídeos de Museu é Mundo, penso que aquilo é muito anos 1960-1970. Mas vejo que há algo que transcende a percepção histórica, algo que fica, que dialoga com o agora, que recupera o passado como presente e possibilidade de futuro. Os de Oneness parecem esteticamente mais próximos, mas naquilo que buscam de atemporal ou de fusão entre o contemporâneo e o eterno há algo de déja-vu e que talvez já comece a ficar datado (ou a indiciar um tempo).

Vejam as duas exposições.

Mariko Mori - Oneness