segunda-feira, 2 de maio de 2011

Lobato e o racismo

Desenho de Ziraldo para o bloco que M* é essa?

Há algum tempo, pipocou na imprensa polêmica sobre um parecer do Conselho Federal de Educação que acusava de racista o livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato. Na época, quase escrevi sobre o assunto, admirador que sou de Lobato – justo eu, um mestiço. Acabei deixando passar, mas o assunto volta agora à tona, como reportagem de capa da revista Bravo!

No auge da polêmica, quando se cogitava proibir a distribuição pelo governo das Caçadas, muitas vozes saíram em defesa do escritor, buscando livrá-lo da pecha de racista. Ziraldo chegou a preparar estampa para as camisetas de um bloco carnavalesco, ela mesma acusada de racista, em que Lobato aparecia abraçado a uma mulata. Alguns lembraram todos os aspectos positivos que cercam a Tia Nastácia, encarnação da sabedoria popular, cujas mãos mágicas geraram a boneca Emília e o Visconde de Sabugosa.

Mas Lobato era realmente racista. Não há como negar isso. Como era, para os padrões de hoje, antiecológico e machista. Reconhecer isso faz parte da leitura de sua obra – e não deve impedir que se goste dela por outros aspectos.


Se havia pontos contraditórios em seu racismo – que às vezes servem para tentar escamotear o problema – é porque esse gigante de nossa literatura era sempre um poço de contradições . E mesmo que se descubra um texto com um mea culpa – como a Bravo! deseja em determinado momento - não há como apagar as muitas frases infelizes que ele semeou durante anos.



O criador do Sítio do Picapau Amarelo, o pioneiro de nossa indústria editorial, o campeão do “petróleo é nosso”, o modernista que brigava com os modernistas – esse homem em tantos aspectos à frente de seu tempo era também marcado por um racismo burro, tingido por falsas cores científicas, tão agressivo às vezes que não pode sequer ser desculpado em função de um suposto espírito do tempo.

Mas, diante dessa constatação, cabe perguntar: e daí?

Borges era racista. Celine era racista. José de Alencar era racista. Platão marcava-se por um espírito de classe que hoje soa totalmente anacrônico. A Bíblia tem passagens de um obscurantismo atroz . Por causa disso, devemos censurá-los, jogá-los fora?

Ou, por outro lado, precisamos desculpá-los por causa disso? Ou não serão infantis as duas posturas?

Não é preciso negar, omitir ou desculpar nada. Lobato não precisa de mentiras, inconscientes ou não, de fotos retocadas. Obras literárias não são escritas por anjos. E como disse o Contardo Calligaris na sua coluna da Folha de S. Paulo da semana passada, Deus nos livre dos puros (ou algo semelhante). Ou como também dizia o Jô Soares na época do Telê Santana, referindo-se a um jogador que já não sei quem é (seria o Reinaldo?): eu o quero para atuar na seleção e não para casar com minha filha.

Estamos, no caso, diante de livros muito bons, em que, de forma episódica, em maior ou menor grau, aparece o racismo e não diante de obras racistas em que raramente brilhe alguma qualidade estética ou cultural.

É besteira pensar que alguém, ao ler uma frase racista num livro infantil ,não seja capaz de processá-la (note bem: de buscar o entendimento e não de entrar com uma ação judicial contra ela). E não sou contra notas de auxílio ao professor, em edições didáticas, capazes de contextualizar o assunto e possibilitar discussões em sala de aula. Alguns disseram que são contra os “livros com bulas”, mas creio que há muitos contextos de leitura possíveis, diferentes formas de fruição, e que todas essas possibilidades somente enriquecem a tradição da obra. Se assim não fosse, poderíamos abdicar das edições críticas e do próprio exercício da crítica literária, estética, cultural. Não se trata de "bulas", de prescrições, mas de comentários.


Obras literárias não foram feitas para serem sacralizadas. Devem-se prestar também ao jogo ideológico, às discussões de cada momento, desde que não sejam falseadas. Escritores não são santos, herois impolutos - ninguém é. Lobato merece edições facsimilares, edições fiéis ao texto original, sem qualquer aparato, edições críticas, edições com linguagem atualizada, edições com notas didáticas, mesmo que haja, às vezes, equívocos nelas. Assim como Homero merece edições em grego arcaico, em grego moderno, em inglês, em português antigo, em hipertexto...

Que as crianças - brancas, negras, mestiças como quase todos somos - saibam que Lobato era racista e que escrevia lindas histórias. Que discutam sobre isso. O resto é balela.

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