domingo, 3 de abril de 2011

Botero e a sombra

El paisaje de Colombia (2004) - Óleo sobre tela


Nunca fui grande fã da obra de Botero. Suas figuras gordas, bochechudas, coloridas sempre me pareceram um tanto quanto rebarbativas. Este não é um julgamento isento do ponto de vista estético, mas certamente exprime um gosto pessoal. Por outro lado, preciso reconhecer que é justamente a estranheza que há nelas e que eu nunca soube definir que pode salvá-las.

Desse modo, para mim, foi uma grata surpresa a exposição Dores da Colômbia, que está em cartaz na Caixa Cultural de Brasília. Ali encontra-se Botero e, ao mesmo tempo, um não-Botero. Por isso, talvez seja possível flagrar o que realmente é Botero, a despeito dele próprio.

A afirmação acima pode soar enigmática. Explico, portanto.

Primeiro, pense-se no Botero mais usual. O pintor colombiano ficou mundialmente famoso por obras de um falso figurativismo, em que possíveis representações de pessoas de grandes proporções, escultóricas, enchem a tela em poses estáticas ou quase e praticamente sem sombras.

Mais de uma vez, já se escreveu sobre o que haveria de resgaste de convenções renascentistas nessa obra, que inclui, além de cenas cotidianas com figuras que parecem grande bonecas, conhecidas releituras de pintores classicos, como Da Vinci, Velasquez e Jan Van Eyck, bem como composições de fundo sacro. Mas é de uma renascença subversiva que se trata, em que os volumes brotam antes do próprio desenho e do uso exagerado das cores do que dos efeitos de iluminação ou dos jogos de perspectiva.

Subversiva também porque a imobilidade das figuras, com um caráter um tanto rígido e majestoso que se sobressai até mesmo quando elas parecem representar alguma ação, remeteria mais a ícones bizantinos despidos de sacralidade do que à pintura italiana do século XVI, se esses ícones fossem gordinhos e não tão esquálidos. Ou a um dos múltiplos avatares do barroco latinoamericano, em que o excesso das figuras poderia ser realmente associado à festa e à alegria de viver – como muitos fazem ao interpretar a obra do colombiano - se as pessoas retratadas não tivessem, via de regra, as bocas tão conspicuamente fechadas.

De acordo com Botero, sombras “sujam” as cores e, por isso, ele as evita. Seus quadros são festas de tintas em que se espalha uma estranha sensualidade, avessa talvez aos gostos atuais,com suas figuras rotundas, nem um pouco saradas ou gostosas. “Não, eu não pinto pessoas gordas” – disse o artista, certa feira, e com razão. O que há em seus quadros não são pessoas, mas formas e cores, aesthesis pura, de uma sensualidade derivada diretamente do desenho e das tintas, assexualizada. O que poderia haver ali seria a gostosura de uma fruta fria, se lembrassemos que uma fruta numa bandeja não passa de um cadáver, por mais apetitosa que chega.

A compostura dos cadáveres exige bocas fechadas, e as figuras de Botero, via de regra, as têm cerradas. Não exprimem gozo, riso, choro, nada. São, de certo modo, naturezas mortas. O que faz com que a sombra que se ausenta ou se minimiza em cada quadro retorne como um recalque que insiste em “sujar” a composição de outro modo, como uma lembrança de que por trás da festa das cores algo espreita. Mas, segundo o artista, “ (...) uma natureza-morta não e uma gravura botânica. O assunto não é a fruta, mas o quadro. O mesmo se aplica a homens e mulheres (...)”

Há aqui um jogo entre mimese e autorreferência, entre uma esquiva representação do mundo (afinal, os quadros não são “abstratos”, é possível reconhecer nele entes do universo “real”) e uma arte que se esgote em si mesma. Se o assunto é o quadro e não os homens e mulheres que o compõe, por que estes estão ali? São “eidolons”, aquelas formas sem vida que, segundo os gregos, eram o que restava dos homens mortos no Hades.

Não é por acaso que, a respeito das pinturas de Botero, já se disse que nelas

Peles suaves, sensuais, aveludadas, cobrem corpos amplos onde, enterradas bem fundo nas carnes, as pequenas almas, sempre bem dispostas, parecem dormir...

Indagado se as suas figuras tinham almas leves, o pintor respondeu certa vez que “elas nunca quiseram ter almas”. É claro que o sentido aqui é outro, mas é isso mesmo que sempre vi em Botero: um mundo sem alma, em que o elemento figurativo, apesar de suas formas pretensamente cheias de carne, opõe-se, naquilo que tem de estático e sem vida, à vibração das cores.

Bem sei que essa visão contrasta com que o próprio autor disse outra vez a respeito de sua produção:

É importante saber de onde provém o prazer de contemplar um quadro. Para mim, é a alegria de viver combinada com a sensualidade das formas. É por isso que o meu problema é criar sensualidade através da forma.


Sensualidade, sim, mas um tanto dessexualizada, de tanto ser estilizada. Alegria de viver? Talvez como objetivo e não como objeto ou resultado.


Dito de outra forma, é como se sempre houvesse uma sombra por trás da falsa alegria e abundância de Botero. Muitos comentadores falaram da ironia que haveria em composições do colombiano. Porém, mais do que irônica, a duplicidade das obras é de outra natureza, há nela uma espécie de flerte com essa sombra, ou com um abismo que se esconde entre os fundos geralmente chapados e a rotundidade das figuras.



Ao ter como assunto principal o o próprio quadro ou as cores que o compõem, por outro lado, a pintura de Botero como que reprime qualquer intenção social mais explícita, o que não impediu que, ao longo do tempo, surgissem leituras que vissem na “gordura” dos desenhos críticas às elites colombianas e nas bocas fechadas menções ao silêncio cúmplice dessas mesmas elites aos desmandos que imperam na América Latina. Leituras como essa vão além do que o artista sempre afimou sobre a própria obra. Afinal, “sou contra a arte como arma de combate”- afirmou ele.


Mas talvez essas interpretações apontassem para algo de que o próprio pintor não tivesse consciência. Dores da Colômbia, ao meu ver, desvela algo que se esconde em todo o percurso do colombiano. A mostra compõe-se de desenhos e pinturas produzidos entre 1999 e 2004. “Estes quadros são uma forma de repudiar a violência”- disse Botero. A coleção remete diretamente à guerra civil não declarada que se abateu sobre a Colômbia nas últimas décadas, com narcotraficantes, guerrilheiros e matadores de toda a espécie assolando a população civil.



Os massacres são representados em toda sua crueza, tendo como personagens as mesmas figuras “gordinhas” que há décadas vêm literalmente preenchendo as telas de Botero. Como sempre, as composições parecem posadas, marcadas por certa estaticidade, mesmo quando representam os atos mais dramáticos. Algumas delas resgatam algo do primeiro Botero, com um quê de expressionismo que depois se perdeu cada vez mais na obra do artista, em que a deformação foi ficando cada vez mais vazia e autossuficiente, em vez de dar conta de possíveis capacidades expressivas.



As mesmas cores vibrantes de sempre parecem, todavia, agora entrar em choque com a violência e a tristeza de cada quadro. E essa sensação sombria, de morte, que se escondia em Botero desde sempre, surge como motivo explícito de todas as obras a compor a mostra.



Os quadros são bastante repetitivos. Balas transpassam corpos, sangue espirra ou escorre de buracos abertos, mutilações se exibem (“Quiebrapatas”, “Sem título- 1999”), mães choram filhos mortos (“Uma madre – 1999”, “Uma madre – 2001”), a própria Morte cruza algumas composições na clássica forma de um esqueleto, ora munido de uma foice, ora portando a própria bandeira da Colômbia, ora simbolizando as vítimas (“Madre e hijo”), ora como um anjo exterminador (“La muerte em la catedral”, “El paisaje de Colombia”).



A reiteração das figuras e do assunto mesmo dos quadros iconiza uma violência que se repete cotidianamente. O exagero não é agora apenas dos volumes, mas das próprias situações, como em “El desfile”, em que uma procissão de diversos caixões segue sob o vôo de um abutre, ao lado de casas que se acumulam como um monturo.


Mas eis que aqui as bocas das figuras não estão mais fechadas. Finalmente abrem-se, mas encenando o rito da morte (“Sem título – 1999”, “Muerte ”), ou o terror (“Matanza de los inocentes”) ou a dor da perda (“Uma madre – 1999, “Mujer llorando”) ou o riso escarninho (“Viva la muerte”). É como se um vaso se destampasse, mas dele pudesse sair apenas tristeza e pranto.


Seria esse um Botero escondido desde sempre em Botero, como se uma pintura que sempre se colocasse à beira do abismo tivesse se curvado, de repente, sobre ele, procurando ver o que havia de mais fundo?


Mujer llorando (1999) - Óleo sobre tela

Nenhum comentário:

Postar um comentário