domingo, 20 de março de 2011

Desobediência cultural

O Globo de hoje, Caetano continua em dúvida se vai assinar o manifesto da “terceira via”. Enquanto isso, o assunto ganhou força nas redes sociais da internet. Mas ainda não se tornou “viral” , parece ser uma preocupação de guetos e não algo que interesse à sociedade toda.

Na imprensa mainstream o debate vai pipocando aqui e ali. Na Folha de segunda-feira, dia 14/03, houve um espaço maior para a discussão. Título da coluna de Ronaldo Lemos, no “Folhateen”, que se refere, entre outras polêmicas de Ana de Hollanda, ao imbróglio dos direitos autorais: “Ministra enfrenta fogo cruzado na internet”.

Sob o título “Divergência Afinada”, artigo assinado por Ana Paula Sousa e Marcus Preto abriu a “Ilustrada”, dizendo que

(...) parece que, enfim, alguns artistas da música brasileira se dispuseram a discutir, com clareza e sem dedos em riste, a questão da reforma do direito autoral no Brasil.

O artigo, que aborda a emergência da chamada "terceira via", faz uma ótima súmula do que está em jogo. Mas, como visto na transcrição acima, concentra-se mais na questão do direito autoral do que na do direito de acesso. Conclui com a informação de que, ainda nesta semana que se encerrou, os técnicos do MinC deveriam apresentar um parecer à ministra.

Na mesma edição, contudo, outro artigo, assinado pelos mesmos jornalistas, trás o outro lado da questão, ao afirmar que a lei vigente impõe entraves ao consumo cultural e pune atitudes – como a prática de downloads – que já fazem parte do cotidiano de grande parte da população.

Guilherme Varella, advogado do Idec (Instituto de Defesa do Consumidor) é trazido à cena, para lembrar que o Direito Autoral tem um “aspecto diretamente ligado à cidadania” e para anunciar que o instituto “ (...) está estudando entrar com uma ação contra entidades que assinam certas campanhas antipirataria”.

Ricardo Semler, na sua coluna do caderno “Cotidiano”, foi incisivo. Muito lúcido, lembrando Thoreau, coloca a compra ou download de CDs e DVDs piratas na categoria da desobediência civil:

Estudantes devem ser rotulados de cúmplices do crime organizado porque se recusam a pagar R$ 45 por um DVD de filme antigo que custa R$ 2 para produzir e distribuir?”
(...)
A verdade é que a era de ouro dos estúdios e artistas chega ao fim. Não cabe mais pedir que o mundo financie R$ 12 milhões por filme ao Tom Cruise ou que fique babando para os Roll-Royce dos rappers. Muito menos que financie cartéis de estúdios que conseguem, pelas leis vigentes, transformar policiais em capangas pelo lucro.
Ninguém vai defender as fábricas ilegais ou a pirataria intelecutal, mas urge perceber que o mundo mudou.
(...)
É aceitar que o mundo não é composto de acobertadores de traficantes , e sim de adolescentes e adultos inteligentes que não querem mais ser manipulados pelo Gaddafis da indústria de entretenimento. Acordem: 1 bilhão de downloads em 2010, antes mesmo que a banda larga de 10 mega seja corriqueira, é aula para qualquer empresário antiquado. Que criem vergonha na cara e se atualizem – 70,2 milhões de criminosos brasileiros, todos mal-educados, agradecem.

É isso aí, Semler! Ninguém está querendo mexer em centavos, mas nos milhões de uma indústria que perverteu o sentido do que é cultura e do que é arte.

Entendido isso, com certeza ninguém vai morrer de fome ou na ignorância dos biscoitos (finos ou grosseiros) que hoje são vendidos como mercadorias caras. O melhor antídoto contra a pirataria é o bom senso que está faltando a muita gente.

domingo, 13 de março de 2011

E a quarta via?


Mass Media. Em: http://olhares-inquietos.blogspot.com/2010_04_01_archive.html

Continua a briga em torno da reforma da lei de direito autoral.

A Associação de Autores de Cinema, que reune roteiristas como Adriana Falcão, Bráulio Mantovani e Marçal Aquino divulgou em 03/03/2011 carta de apoio à mudança da legislação. De acordo com O Globo de 06/03/2011, o presidente da Associação, David de França Mendes, declarou que:

A nova lei é um avanço de quem tem direito a receber, particularmente para diretores e roteiristas (...) Houve investimento para se chegar ao ponto a que se chegou. Não só do governo. Pessoas viajaram, gastaram tempo e dinheiro. A gente fica muito surpreso em ver pessoas do MinC dizendo que vão rever o processo para defender o autor quando era a nova lei que incluiria mais artistas na distribuição dos direitos.

De outro lado, um grupo de diversos artistas – entre eles, gente dos mais variados espectros, como a poeta e letrista Alice Ruiz, a compositora Cristina Tavares e os músicos Jair Rodrigues, Ivan Lins, Luciana Mello, Ná Ozetti e Tim Rescala, além de entidades como o Sindicato dos Músicos Profissionais do Rio de Janeiro e a Associação Brasileira de Música Independente (ABMI) - lançou na última semana um documento que propõe a reabertura da discussão. Uma “terceira via” aos debates até agora travados. Ou seja: nem contra nem a favor do projeto “sequestrado”, mas pedindo mudanças na legislação vigente, o grupo lista diversos aspectos que considera importantes e não são contemplados nem na lei atual nem no projeto que Ana de Hollanda puxou de volta para o MinC.

Até Caetano Veloso, n´ O Globo de hoje, lembrando-se “totalmente terceiro sexo, totalmente terceiro mundo, terceiro milênio” declara-se tentado a subscrever o manifesto da “terceira via”! Afinal, diz ele, “ o Mautner de Hermano e o meu são a mesmíssima pessoa”. A declaração tem a ver com o fato de a já famosa frase de Caetano – “ninguém mexe em um centavo de meus direitos” – ter surgido como uma citação de Mautner, que parece ter sido mencionado também por Hermano, em texto a que ainda não tive acesso, entre as “hostes libertárias”.

O caminho proposto é legítimo e sadio. Muitos o trilharão de boa fé, interessados numa solução realmente cidadã. Mas certamente no meio haverá também a turma da protelação, do “quanto mais enrolado melhor”. Numa discussão democrática não há como fugir disso.

Enquanto isso, até a última notícia, a ministra vinha sem receber os músicos interessados na questão, inclusive os componentes da chamada “terceira via”. Segundo o Correio Braziliense de 11/03/2011 – em reportagem que traz reclamação de Tim Rescala a respeito de Ana de Hollanda não recepcionar os artistas, mas atender representantes do ECAD - , a ministra teria declarado que:

A equipe vai ler a lei em vigor, vai ver esse projeto de lei que ninguém conhece bem e vai ouvir a demanda de todos em relação aos direitos autorais.

Essa fala provoca diversas dúvidas: quem é a equipe? quem ela representa? quem é o “todos” que vai ser ouvido? como e quando? e qual a composição desse “ninguém”, a desconhecer o projeto, depois de tantos paineis, de alguns meses de exposição na internet e com tantos se julgando aptos a apontar as suas falhas e virtudes? Na realidade, tendo em vista as necessidades de mudanças, o debate público deveria ter sido ainda mais intenso do que foi. Mas "ninguém" soa meio exagerado. A bem da racionalidade da discussão, hipérboles deveriam ser momentaneamente deixadas de lado.

De novo, o debate parece se concentrar mais numa briga de compadres, sem voz para o público. Continua o vício de se falar apenas em direitos autorais (com uma preocupação subliminar com relação a todos os intermediários possíveis), sem um engajamento mais amplo com a questão da circulação da cultura, num tempo como o nosso e numa sociedade com as carências da brasileira. Não vejo manifestação, por exemplo, de consumidores de livros e músicas.

Se é difícil organizar a massa em torno de uma questão como essa, creio – talvez um tanto idealisticamente - que Universidades, Associações de Pais e Alunos, Sindicatos de Professores, entre outros, teriam um papel a cumprir nisso.

E por que não as chamadas redes sociais na internet?

quarta-feira, 9 de março de 2011

Direitos de circulação da cultura


Creative Commons Superman.

Uma discussão que interessa a muitos

Nas últimas semanas, tenho acompanhado as discussões motivadas pela retirada da menção à Creative Commons na página do Ministério da Cultura e pelo recuo do mesmo Ministério no que se refere ao encaminhamento de uma nova proposta de legislação sobre os direitos autorais. Participaram do debate – travado principalmente nas páginas de O Globo, mas que depois se derramou por outros veículos - nomes muito representativos, como Hermano Vianna, Caetano Veloso, Gilberto Gil e José Miguel Wisnick, dentre outros.

Num campo extremamente mediado como é o da cultura na atualidade, são muitas as vozes a quem interessa esse diálogo - algumas mais, outras menos conscientes disso. Há as dos autores, daqueles que produzem cultura. Há aquelas dos múltiplos intermediários, que vão desde editores e representantes de gravadoras, até críticos culturais e advogados especializados em direitos autorais. Todos esses vivem ou almejam viver da cultura. Mas há também as vozes daqueles que menos se fazem ouvir, os consumidores de cultura, ativos ou potenciais, que, ao fim e ao cabo, são os que devem pagar a conta. É desse lugar que procurarei falar aqui.

A menção à Creative Commons fora colocada na página do Ministério na época de Gilberto Gil ou na de Juca Pereira, não importa. A retirada, na gestão Ana de Hollanda, foi compreendida por muitos como um retrocesso e uma declaração de guerra. Outros defenderam o gesto como uma posição madura e avessa ao que seriam modismos próprios de intelectuais deslumbrados com a cultura digital.

Caetano Veloso, em sua coluna dominical, tem abordado continuamente o assunto, na busca de inventivar o debate, propondo-se, ao mesmo tempo, um mediador imparcial e um defensor do direito de autor. “ Ninguém toca em nem um centavo dos meus direitos” – disse ele, em certa altura, assumindo posição que foi interpretada por muitos como conservadora.

A Folha de S. Paulo teve uma reação um pouco retardada em 22 de fevereiro, quando publicou, na primeira página da Ilustrada, matéria com o título “Duelo de compadres”, em que contrapõe entrevistas com Caetano e com Gilberto Gil, enfatizando as diferenças de posições entre ambos. O texto é encabeçado por uma foto do primeiro com ar raivoso, a gesticular. Ao pé da página, outra imagem, agora de Gil, mostra o cantor a empunhar uma guitarra, também com expressão crispada. Uma maravilha de montagem jornalística.

O artigo da Folha, embalado por uma visão muito comum, induz o leitor a julgar que as Creative Commons se contrapõe ao copyrigt. Mas será isso mesmo?

A falsa questão da Creative Commons

Creative Commons (CC) é uma organização não governamental, sem fins lucrativos declarados, com sede nos Estados Unido. Essa origem gringa tem sido uma das fontes de desconfiança de alguns dos seus críticos no Brasil. Ao usar as licenças geradas pelo sistema, qualquer autor preautoriza diferentes graus de intervenção e de compartilhamento da obra por parte de todos os possíveis usuários.

Criam-se, assim, potenciais “aberturas” no tradicional sistema de copyright, principal regulador dos direitos de autor em todo o mundo. No copyright, a reprodução ou uso de qualquer trecho de uma obra depende, caso a caso, da prévia e expressa autorização de quem a criou. Em outras palavras, pressupõe-se que “ todos os direitos são reservados”.

Sem questionar propriamente a base do copyright, as Creative Commons estabelecem um contrato privado entre o autor e o seu público, sob a guarda dessa legislação mais ampla e restritiva. As licenças do tipo CC preservam, assim, o “direito moral” do autor, aquele que “autoriza”, previamente e em caráter geral, uma restrição dos seus direitos econômicos, ao permitir a cópia e compartilhamento. Em alguns casos, as licenças liberam também modificações na obra.

Usei, no parágrafo anterior, o verbo “autorizar” de modo intencional. Não se pode esquecer nunca que “autorizar” e “autor” têm a mesma raiz. Assim, pelo mesmo teoricamente, as Creative Commons não ofendem a autoria, a autoridade do criador sobre aquilo que produziu, bem como não propõem o fim do “copyright” como um princípio geral, mas permitem que cada autor, de motu proprio, generalize licenças prévias para casos específicos.

Note-se que grafo “Creative Commons” com iniciais maiúsculas e “copyright” com minúscula. Nisso não vai nenhuma defesa de uma pretensa superioridade da primeira sobre o segundo. Também no fato de eu falar “a” ou "as" Creative Commons e “o” copyright” não há engano ou machismo embutido, ao tentar sugerir subliminarmente uma possível superioridade do segundo. Apenas contraponho “uma” licença particular, correspondente a uma marca (por isso, as maiúsculas, como em Google ou Facebook), a “um” princípio jurídico aceito universalmente (ou quase), ambos padecentes das mesmas limitações diante da realidade.

Compreendo a carga simbólica que há na exclusão da marca da Creative Commons da página de um Ministério que até ali vinha defendendo, em diversos foruns, a flexibilização dos direitos de autor, diante da realidade da nova cultural digital. Todavia, dado o caráter particular da licença, que não se coloca nunca como um princípio universal, confesso que, desde o início, fiquei sem entender a importância, a meu ver excessiva, que se deu a esse gesto.

Em um dos artigos que dedicou ao tema, Wisnick também apontou esse “ponto cego” no discurso de Caetano e dos oponentes da Creative Commons:

(...) Caetano passa do princípio liberal da livre expressão para o princípio liberal da livre competição, assegurado historicamente ao proprietário das matrizes na época da ´repetição´(´ninguém toca em um centavo dos meus direitos´). Por um motivo a ser esclarecido, no entanto, os defensores corporativos da universalidade dos direitos autorais veem a livre flexibilização, por aqueles autores que assim o queiram, e para o universo de suas próprias obras, como uma ameaça à universalização daqueles direitos. Esse é um foco gerador de mal entendidos e de fantasmas que o estado atual da discussão terá que ultrapassar.

Ou seja, por que a bronca contra a Creative Commons – ou por que a defesa acirrada dela - se, pelo menos até prova em contrário, ela não coloca em risco o princípio geral do copyrigt ou se apresenta como uma alternativa forte a ele? Não pode ser mera incompreensão. Acredito mais que se ataquem as licenças como se ataca uma bandeira inimiga.

Caetano aponta aquilo que enxerga como ingenuidade nos defensores da Creative Commons:

Por outro lado, de todas as coisas que li numa entrevista de Gil, a que mais me deixa embatucado é assertiva de que o autor deveria preferir decidir sozinho sobre como quer, em cada caso, licenciar suas obras. Ora, se é assim, ele terá que, por conta própria, rastrear os caminhos dos proventos advindos dos direitos. Sem sociedades nem ecads que intermedeiem. Será isso confortável? E mesmo viável?

Mas essa dificuldade de rastrear e fiscalizar não será a mesma que se observa no caso das obras geradas sob copyright pleno, em um mundo em que a internet ganha cada vez mais espaço e em que a capacidade de reprodução técnica cresce avassaladoramente a cada ano? Os “ecads”, para usar o termo de Caetano, não seriam – para ficar numa imagem desgastada, mas poderosa - como anões encarregados de tapar apenas com seus curtos braços os buracos que se abrem diariamente numa gigantesca represa?

A Creative Commons, ao permitir tão somente licenças voltadas para a reprodução e compartilhamento gratuitos, ao colocar possíveis restrições apenas quanto ao uso comercial das cópias ou quanto à modificação da obra de origem, assume, como princípio, a impossibilidade de tapar a represa com os bracinhos curtos do anão. Em outras palavras, parte do princípio de que eventuais receitas de um produto intelectual não serão originadas do consumo direto.

As fissuras na represa são representadas pela pirataria, pelos downloads ilegais, pelo compartilhamento de arquivos em redes do tipo P2P, todos aqueles caminhos de que os consumidores de cultura lançam mão para obterem mais barato ou mesmo grátis conteúdos a que, às vezes, sequer teriam acesso se não fosse por esses meios.

Se um autor acredita que se possam conter os vazamentos ou, pelo menos, que é honroso e lucrativo tentar fazê-lo, se quer preservar o seu direito ao esperneio, então pode manter a sua criação nos limites do copyright pleno.

Gil versus Caetano? Em: http://ecosdotelecoteco.blogspot.com/2011/02/polemica-entre-amigos.html

A verdadeira questão


Assim, o que está em jogo, no fundo,quando se grita contra a Creative Commons – embora de forma um tanto quanto irracional -, é como controlar downloads e compartilhamento de arquivos - e como receber por eles. O direito moral do autor não é afetado pelas fissuras da represa. Pelo contrário, elas são como outros tantos arautos da fama.

Se os trágicos gregos contentavam-se com uma coroa de louros, os autores contemporâneos, em sua maioria, não querem abrir mão de “nenhum centavo de seus direitos”. A briga não é contra outros autores (terreno em que as Creative Commons poderiam teoricamente estabelecer alguns limites), mas contra consumidores (caso em que licenças especiais, por mais que estabeleçam gradações de cópia, esbarram sempre na mesma incapacidade de fiscalização que assola do direito de autor convencional).

Não há como lutar contra o vínculo entre mercado e cultura. A própria luta, na maioria das vezes, vira mercadoria (é só pensar em todos os artistas malditos que viraram marcas rentáveis). Para o pensamento livre e para a liberdade criativa, foi bom os artistas se livrarem dos mecenas, bem como foi imprescindível que se aprimorassem os mecanismos de arrecadação dos proventos pagos pelo público. Artistas e intelectuais que não dependam do Estado ou de corporações, mas que possam gozar de “ócio criativo” são fundamentais para a fertilização da cultura. O copyright foi importante nesse sentido, ao aliar direitos econômicos aos direitos morais sobre a obra.

O que acontece na atualidade é que os mecanismos laboriosamente desenvolvidos ao longo dos últimos três séculos (a primeira lei do copyright data de 1709), que pareciam tão sólidos, estão rapidamente se desmanchando no ar (a referência a Marx aqui não é de graça), enquanto artistas, distribuidores e responsáveis pela fiscalização batem as cabeças, sem saber o que fazer.
Os intermediários veem os seus modelos de negócio se esboroarem, enquanto os produtores se assustam ao não encontrarem mais firmeza nas confortáveis redes de arrecadação com que contavam antes (ainda que pudessem reclamar muito delas). Os consumidores, do outro lado, se empaturram de um mingau que veem jorrar grátis, sem se preocupar muito se vão matar de fome as suas vacas sagradas.

Desse modo, no contexto atual - marcado por acelerada depreciação de tecnologias e modelos de negócio e pela chamada convergência das mídias - brigar por Creative Commons ou pelo copyright sem restrições é fazer, de certo modo, o papel daqueles cães que deixaram a caravana passar. É não perceber – ou fingir não perceber – que uma série de outras questões está sobre e sob a mesa. E muita coisa importante está sendo colocada debaixo dela.

Na realidade, a questão cerca-se de aspectos mais importantes, do ponto de vista da sociedade, do que os supostos direito e possibilidade real ou imaginária de um indivíduo determinar os limites de uso de sua obra. E muitos desses aspectos, aqueles que interessam mais diretamente aos cidadãos de modo geral, quais sejam os que remetem ao direito de acesso à cultura, estão sendo negligenciados ou pelo menos colocados num plano secundário no debate atual.

Apesar de legítimo, pensar apenas nos autores e nos sistemas de distribuição e de fiscalização não deixa de se carregar de um particularismo muito egoísta. Até por conta de quem são os debatedores, tem-se privilegiado, nos artigos de jornal que servem de pano de fundo a esta postagem, a questão da música, sob a ótica de seus produtores. Uma discussão política de alcance mais ampla viu-se reduzida, assim, em certos momentos, a um Fla-flu pró ou contra ECAD.

Quando se fala em produção de cultura, não se pode esquecer a outra ponta da cadeia, onde não há apenas um consumidor stritu senso, mas um cidadão, um homem, uma mulher. O direito de acesso à cultura deveria ser tratado sempre como inalienável. E esse é um dos pontos que, muitas vezes, tem sido colocado em segundo plano nos debates atuais.

Falar de políticas públicas (expressão, na verdade, redundante), nesse sentido, deveria sempre ser uma proposta de mediação entre os direitos do autor (morais e financeiros), de um lado, e os direitos de acesso, do outro. Os direitos de quem está no meio do caminho (gravadoras, editoras, cadeias de distribuição) não podem e não devem esquecidos, mas são sempre subsidiários, não por serem menos importantes, mas por somente existirem enquanto assegurarem aqueles outros.

Por isso, acredito que mais do que falar em direitos autorais, de intermediários ou de consumidores de cultura, deva-se falar em direitos de circulação da cultura.

A importância da legislação


Cartaz. Em: http://www.cultura.gov.br/site/2008/02/22/noticias-do-forum-nacional-de-direito-autoral/

Na realidade, a sociedade encontra-se hoje, no caso desses direitos, diante de um evidente problema de economia política, que coloca em xeque mecanismos históricos de financiamento e comercialização. É ridículo, embora às vezes comovente, fazer o papel dos copistas que foram contra a imprensa ou o dos ferradores de cavalos que brigaram contra os automóveis. Simplesmente não dá para imaginar que as coisas tenham de ficar como eram há décadas. Não se pode, de maneira legítima, tentar fazer crer que os atuais modelos sejam ahistóricos, perfeitos.

O que acontece hoje é apenas a atualização de embates que já se fizeram presentes no passado. O conflito entre o direito de acesso e os direitos financeiros, quer do autor, quer dos intermediários, é antigo. No século XVIII, Diderot e d´Alembert, os pais da Enciclopédia, escreveram opúsculos sobre a questão, colocando-se em campos opostos, como, de certo modo, Caetano e Gil hoje. O que se discutia então não era a comercialização de músicas e canções, como agora, mas de livros. Diderot colocou a sua pena a serviço não dos autores, mas dos livreiros. No caso francês, os autores vendiam seus direitos para o livreiro a um preço fixo, como um artista que vende uma obra de arte irreproduzível para alguém, que a partir desse momento tem o direito de revendê-la pelo maior valor que conseguir. Por isso, não tinham de se preocupar com cópias piratas, mas o livreiro sim. D ´Alembert, por sua vez, militou a favor do direito irrestrito de acesso dos leitores às obras de cultura e, por isso, defendeu aquilo qie hoje chamamos de pirataria, como um mal necessário.

Dentre os debatedores que se têm debruçado sobre o assunto pela imprensa nos últimos tempos, um dos que me parecem ter buscado uma posição verdadeiramente mais isenta e historicamente situada é José Miguel Wisnick, em sua coluna semanal n´O Globo. Num dos artigos, em 05/02/2011, recorreu às ideias do economista francês Jacques Attalli para localizar os atuais embates num momento em que as tecnologias de simples reprodução estão sendo colocadas sob a égide daquelas de comunicação.

"As transformações, quando se dão em música, antecipam transformações que vão se dar em toda a sociedade” – diz Wisnick, ecoando Attalli. Depois de três grandes momentos históricos da produção musical, o do “sacrifício”, o da “representação” e o da “repetição”, estaríamos entrando num quarto momento, o da “composição”, marcado por um processo de transautoria:

Hoje me parece claro: mudanças técnicas decisivas alteram a economia política da música, o modo de produção e de difusão dos sons, e o lugar dos seus detentores. A verdade é que a digitalização, o armazenamento universal, a copiagem instantânea e inumerável, as possibilidades de processamento e reprocessamento, dando um sentido inesperado à palavra "composição", têm efeitos concretos e inevitáveis sobre o destino dos sons. A acreditarmos no autor de Bruits, tem efeitos concretos sobre o destino de tudo, já que a música tem o poder de anunciá-los.

Essas mudanças são as incontroláveis fissuras na represa. Mas, além dessa abordagem que ele chama de “excessivamente panorâmica”, Wisnick sinaliza um outro – e necessário - exercício de contextualização, focado nas mudanças políticas e culturais brasileiras das últimas décadas, embora não chegue a aprofundá-lo.

Em 26/02/2011, voltou ao assunto dos direitos autorais, colocando-o não apenas no quadro de redefinição das políticas culturais proposto pela nova gestão do Ministério da Cultura, mas, numa abordagem histórica de médio alcance, como uma espécie de retomada daquilo que ele chama de “debate interrompido em 1968”. A atualização desse debate, parece, tem tanto a ver com a oposição entre liberalismo e papel do Estado como fomentador cultural, quanto com diferentes visões políticas a respeito de como esse mesmo Estado pode atuar como agente e legislador cultural.

A menos que se faça refém de grupos, o Estado deve assumir o papel de mediador numa transição histórica como a que acontece nesse momento, garantindo o diálogo entre os direitos advindos da produção cultural e aqueles mais universais, referentes ao pleno acesso.

Por que, por exemplo, impedir que alguém “pirateie” uma obra não disponível de outro modo – por exemplo, uma edição esgotada ou que não circule no local em que a pessoa mora? Por que privar uma geração inteira de ter contato com a produção de um autor porque os seus herdeiros brigam entre si ou com uma editora ou gravadora? Aqui no Brasil, foram os casos de Monteiro Lobato, Guimarães Rosa e Paulo Leminski, apenas para ficar em uns poucos e significativos exemplos. Isso sem contar os casos burros, em que filmes como Amor, estranho amor, de Walter Hugo Khouri, ou livros como A estrela solitária e Roberto Carlos em detalhes, por diferentes motivos, ficam fora de circulação, sobrestados pelo Judiciário. Todos esses são casos em que direitos privados se sobrepuseram aos públicos.

Por outro lado, por que hoje pagar escorchantes R$ 40,00 ou R$ 60,00 por um DVD em lançamento ou por um CD importado, se os novos meios de distribuição permitiriam que chegassem bem mais baratos, podendo atingir potencialmente uma audiência mais ampla, se os modelos de negócio se ajustassem à nova realidade?

Num cenário de mudanças aceleradas como o atual, a menos que acreditemos que uma nova racionalidade vai emergir naturalmente da confusão e que exista uma “mão invisível do mercado” capaz de amarrar todas as pontas soltas e desatar todos os nós, o papel do Estado, como legislador e como fiel da balança, sobressai. Como esse papel pode ser exercido sem que se transforme em tutela é uma questão chave.

A importância de atualizar a legislação a respeito da circulação cultural (hoje “legislação sobre direitos autorais”) avulta nesse cenário.

Aqui se lembre que a ministra Ana de Holanda, mais do que retirar a menção à Creative Commons da homepage do MinC, sustou a tramitação de um projeto de lei sobre os direitos autorais que vinha sendo discutido há cerca de quatro anos nas gestões anteriores e que já estava na Casa Civil para ser encaminhado ao Congresso. Esse, sim, parece um gesto substantivo, que precisa ser analisado com cuidado. As Creative Commons só funcionam – ou não – sobre o pano de fundo de uma legislação mais ampla. E é a discussão sobre a atualização desse substrato legal, evidentemente obsoleto, que não pode ser escamoteada.

Transparência é necessária

Não havia consenso sobre o projeto que a ministra retirou para vistas. É inegável, todavia, que passara por um amplo debate, talvez o mais amplo possível, em se tratando de um assunto que não desperta muitas paixões populares. Foram cinco congressos e dois foruns, reunindo especialistas nacionais e estrangeiros, num processo que se iniciou há anos e que culminou numa consulta pública, com mais de oito mil sugestões.

A pergunta que se faz é como se processará a revisão que agora se propõe. No escuro dos gabinetes? Ao longo da semana, circularam rumores de que a nova diretora de Direitos intelectuais do MinC, Marcia Regina Barbosa, seria indicada por um advogado do ECAD. Isso pode ser mentira, mera manobra para “queimar o filme” de uma servidora pública isenta. Mas os boatos são parte do preço que se paga pela falta de clareza na condução de determinados assuntos.

A legislação que se debate não é do interesse de poucos, mas de toda a sociedade brasileira. Urge trazer de novo a discussão para foruns mais amplos. Se a ministra realmente quiser mostrar transparência, é importante que divulgue, o mais rapidamente possível, um plano de ação nesse sentido.