domingo, 15 de novembro de 2009

Conversa de botequim, ou a poesia contra a cultura

Poemolotov, de Diego Medeiros - verbalizando-ou-nao.blogspot.com

Nesta terça-feira recebi pelo correio um número recente do jornal Repórter Leme, em que um velho amigo, Marcos Roberto Zani citava uma frase minha, recuperada de uma conversa de botequim, de um momento difícil em que eu procurava me libertar, entre muitas cervejas, do choque recente das mortes de meus pais. O Marcos é companheiro de longas jornadas literárias e etílicas (não necessariamente nessa ordem) e comigo editou, ainda moleques, no ínicio dos anos 1980 um pasquim poético, O Pêndulo, lá na cidade de Leme, interior de São Paulo. De bate-pronto, mandei-lhe email que reli há pouco. Não há nada desenvolvido ali, mas são questões que julgo importantes, por mais irrelevante que alguém possa achar a poesia nos dias de hoje. O texto não traz propriamente um pensamento articulado, mas idéias soltas, a rodearem algo esquivo. Decidi reproduzir aqui a parte final da mensagem, com uma edição mínima.

”Recebi o jornal que você mandou. Li seu artigo ontem à noite, já bastante tarde. Não me lembro de quase nada da conversa daquela noite. Assim, quanto àquela questão inicial de seu texto- se a poesia ainda tem importância ou se ainda há lugar para a poesia - também não me recordo do que disse.

Todavia, sem dúvida, ainda há lugar para ela. Continua importante também. Do que tenho sérias dúvidas é se a poesia escrita, a dos livros, ainda pode exercer o mesmo papel que teve há algumas décadas, quando escreviam, por exemplo, Drummond, Bandeira, ou quando os concretos lançavam seus manifestos, ou mesmo quando os marginais faziam suas performances mimeográficas. O mundo muda, a poesia muda.

Acho, por exemplo, que a poesia livresca, aquela pensada para figurar na página de um livro, perdeu muitas das funções que tinha. Não quero dizer com isso que ela tenha deixado escapar totalmente o seu papel e o seu lugar. Tanto é que, nas Sibilas, a daqui e a da Espanha, escrevi dizendo o contrário - e não estava mentindo e nem mudei de opinião. Apenas não podemos esperar que essa poesia tenha as mesmas reverberações que talvez tenha tido no passado Ou será que tais reverberações são uma fantasia, mais uma, a nos acalentar com algo que não existiu?

Aliás, esse problema se imbrica com outro, de caráter mais geral. Poesia livresca faz parte de algo que poderíamos chamar de “alta cultura”, e esse rótulo há muito foi questionado. E o poema impresso talvez fosse uma das manifestações mais elitizadas dessa cultura.

Mas a poesia está também na canção popular, na Internet, incorporando novos recursos. Por que chamar um aedo ou trovador de poeta e recusar esse título a um cançonetista contemporâneo? Aliás, creio que ninguém mais pode ter dúvidas seriamente a respeito disso. Há quem diga também que a canção morreu, mas acho que nunca se produziram e ouviram tantas obras desse tipo quanto hoje.

Talvez, no entanto, no que se refere à poesia, a questão realmente importante seja outra. Talvez sempre tenha sido outra. Talvez a poesia possa morar na cultura, de um lado, e na arte, de outro. Talvez a arte seja algo que vem para dar uma porrada na cultura e fazer com que ela se mova, transformando-se. Há arte que fica como incrustação na cultura, sem se diluir nela, um corpo estranho, como uma dissonância necessária. Há arte que muda a cultura e, às vezes, pode se perder nela. Há poesia que é arte - das duas categorias - e poemas que são apenas parte da cultura. Isso pode acontecer no livro, na canção, na Internet, por isso categorizar hoje é tão difícil. Pound tinha razão em parte. Há poetas que são enganadores, há poetas que são diluidores, há poetas que são artesãos, há poetas que são artistas - em qualquer meio. Acho apenas que em alguns desses meios a poesia tende mais a ser arte e em outros a ser cultura. Acho que a poesia hoje - arte e cultura- tem uma ampliação de audiência em relação ao passado, mas diluída em muitos canais. A gente, às vezes, fica procurando a poesia nos mesmos canais de sempre, e ela está ali do lado, sem que seja vista, e depois a gente diz que a poesia sumiu, ficou irrelevante, etc. etc.

Quanta dessa poesia, contudo, é informação nova, pode mudar a cultura, ou pelo menos fazer um remanso, ou escavar um grito nela? Quanto é poesia verdadeiramente e não apenas poema? E como fazer para mudar a cultura, ou para fazer ouvir o silêncio e o brado da poesia em canais cada vez mais dispersos?

Mas tudo isso é papo de boteco internético, que um dia ainda vou organizar.”


Poeta Pobre (Der arme Poet) do pintor e poeta romântico alemão Carl Spitzweg

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

A palavra, ponte e muro


No livro As palavras no tempo – vinte e seis vocábulos da Encyclopédie reescritos para o ano 2000, organizado por Domenico De Masi e Dunia Pepe, leio no verbete “Comunicação e Informação”, escrito por Giorgio De Michelis, algo que me surpreende:

O vocábulo italiano comunicazione deriva do vocábulo latino communicatio e partilha com comunicare uma relação com o latino communis, que deriva de cum munis e significa “que sofre uma autoridade junto”. É interessante notar que a raiz de munis é a mesma de moenia, que significa muros, isto é “sinais dos limites em que se encerra a autoridade”. A etimologia de comunicação correlaciona semanticamente este termo à ação de pôr junto sob uma mesma autoridade, dentro dos mesmos confins, de tornar comum.

Não sei ainda se a etimologia proposta por De Michelis tem realmente raízes históricas ou é fantasiosa. O fato é que propõe uma reflexão interessante. Se a comunicação se dá no espaço da civitas (cidade), e essa é cercada por muros, do outro lado estão os bárbaros (etimologicamente, do grego, aqueles que “falam uma outra língua”, que estão fora da cum munis).

O corrente é (e está certo, é isso mesmo) relacionar a “comunicação” com “comum + ação”, com “colocar em comum”. Comunicar é ligar, estabelecer um “entre” que aproxima, tentar vencer um "entre" rebelde, buscar uma margem que sempre está além. Sempre há algo incomunicável, pois os signos não dão conta do mundo e, se há algo “no meio”, há também distância. Entre o “emissor” e o “receptor”, entre o signo e a coisa - sempre há uma falta.
Todavia, esse achado de cum munis, de moenia, que a comunicação não é só ponte, mas também muro, revela outra brecha, um avesso, um inconsciente da palavra, que está além dessas formas de in-comunicação mais notadas, mais mediadas. Uma brecha em relação ao outro, uma outra brecha em relação ao próprio vazio, uma brecha da brecha, que fala menos de uma impossibilidade de preencher, de saltar, e mais das impossibilidades criadas pelas escolhas presentes em todos atos comunicativos.

O mundo da comunicação é uma pletora de compossíveis que não podem estar todos atualizados em cada ato. Se falo com você, excluo aquele que não conhece a nossa língua. Se gesticulo, excluo aquele que é cego. Se grito, excluo aquele que é surdo. Se toco, excluo aquele que está longe. Se transmito um programa de TV para todos os televisores de um lugar em que, em todas as casas, em todos os cômodos, há um aparelho ligado, sempre alguém estará distraído, fazendo amor, ou preocupado com as contas a pagar, ou fora desse lugar.
Todo gesto de contato é também um gesto de exclusão, por mais que queiramos diferente. É pelo menos um gesto que não pode incluir todos e que carrega escolhas, intencionais ou não. Uma escolha é sempre de Sofia, deixa algo de fora. Do outro lado, separado de nós que nos comunicamos, sempre haverá um bárbaro. E bárbaro aqui não é somente aquele que quer entrar no espaço da civitas e que eventualmente queremos deixar do outro lado, mas também aquele que esquecemos, aquele de quem não sabemos, aquele que não sabe de nós, aquele que pouco está se lixando para o espaço que circunscrevemos, é o próprio espaço que queremos saltar.
Uma ponte entre duas margens exclui, pelo menos, o rio - e não adianta dizer que ele é justamente o obstáculo a ser ultrapassado. Por ele podemos, por exemplo, navegar. E se for mero abismo quantos segredos esconderá? Aos muros concretos, sucedem-se outros, que nem sempre chegam a ser imaginários, tão ou mais reais quanto os primeiros.
Uma teoria da comunicação consequente não há de reconhecer isso? É preciso fazê-lo, como um ato de integridade – e um primeiro passo para caminhar sobre o moenia, fio de uma eterna navalha.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Viva Leminski!


Há vinte anos, partiu para outras lutas o samurai que sabia fazer poesia da vida.

Quem puder esteja lá. É preciso manter vivos os heróis de verdade.