quinta-feira, 5 de novembro de 2009

A palavra, ponte e muro


No livro As palavras no tempo – vinte e seis vocábulos da Encyclopédie reescritos para o ano 2000, organizado por Domenico De Masi e Dunia Pepe, leio no verbete “Comunicação e Informação”, escrito por Giorgio De Michelis, algo que me surpreende:

O vocábulo italiano comunicazione deriva do vocábulo latino communicatio e partilha com comunicare uma relação com o latino communis, que deriva de cum munis e significa “que sofre uma autoridade junto”. É interessante notar que a raiz de munis é a mesma de moenia, que significa muros, isto é “sinais dos limites em que se encerra a autoridade”. A etimologia de comunicação correlaciona semanticamente este termo à ação de pôr junto sob uma mesma autoridade, dentro dos mesmos confins, de tornar comum.

Não sei ainda se a etimologia proposta por De Michelis tem realmente raízes históricas ou é fantasiosa. O fato é que propõe uma reflexão interessante. Se a comunicação se dá no espaço da civitas (cidade), e essa é cercada por muros, do outro lado estão os bárbaros (etimologicamente, do grego, aqueles que “falam uma outra língua”, que estão fora da cum munis).

O corrente é (e está certo, é isso mesmo) relacionar a “comunicação” com “comum + ação”, com “colocar em comum”. Comunicar é ligar, estabelecer um “entre” que aproxima, tentar vencer um "entre" rebelde, buscar uma margem que sempre está além. Sempre há algo incomunicável, pois os signos não dão conta do mundo e, se há algo “no meio”, há também distância. Entre o “emissor” e o “receptor”, entre o signo e a coisa - sempre há uma falta.
Todavia, esse achado de cum munis, de moenia, que a comunicação não é só ponte, mas também muro, revela outra brecha, um avesso, um inconsciente da palavra, que está além dessas formas de in-comunicação mais notadas, mais mediadas. Uma brecha em relação ao outro, uma outra brecha em relação ao próprio vazio, uma brecha da brecha, que fala menos de uma impossibilidade de preencher, de saltar, e mais das impossibilidades criadas pelas escolhas presentes em todos atos comunicativos.

O mundo da comunicação é uma pletora de compossíveis que não podem estar todos atualizados em cada ato. Se falo com você, excluo aquele que não conhece a nossa língua. Se gesticulo, excluo aquele que é cego. Se grito, excluo aquele que é surdo. Se toco, excluo aquele que está longe. Se transmito um programa de TV para todos os televisores de um lugar em que, em todas as casas, em todos os cômodos, há um aparelho ligado, sempre alguém estará distraído, fazendo amor, ou preocupado com as contas a pagar, ou fora desse lugar.
Todo gesto de contato é também um gesto de exclusão, por mais que queiramos diferente. É pelo menos um gesto que não pode incluir todos e que carrega escolhas, intencionais ou não. Uma escolha é sempre de Sofia, deixa algo de fora. Do outro lado, separado de nós que nos comunicamos, sempre haverá um bárbaro. E bárbaro aqui não é somente aquele que quer entrar no espaço da civitas e que eventualmente queremos deixar do outro lado, mas também aquele que esquecemos, aquele de quem não sabemos, aquele que não sabe de nós, aquele que pouco está se lixando para o espaço que circunscrevemos, é o próprio espaço que queremos saltar.
Uma ponte entre duas margens exclui, pelo menos, o rio - e não adianta dizer que ele é justamente o obstáculo a ser ultrapassado. Por ele podemos, por exemplo, navegar. E se for mero abismo quantos segredos esconderá? Aos muros concretos, sucedem-se outros, que nem sempre chegam a ser imaginários, tão ou mais reais quanto os primeiros.
Uma teoria da comunicação consequente não há de reconhecer isso? É preciso fazê-lo, como um ato de integridade – e um primeiro passo para caminhar sobre o moenia, fio de uma eterna navalha.

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