segunda-feira, 28 de junho de 2010

A grande inversão


Hoje se fala muito de desmaterialização das coisas e de imaterialidade da informação, principalmente daquela que circula na Internet. As coisas estariam virando não-coisas, pura informação. Por trás de discursos desse tipo, aflora a milenar oposição entre “forma” e “matéria”. Mas algo que se pode legitimamente perguntar é se realmente é possível conceber-se uma informação pura, desmaterializada.

”Forma” é a tradução latina para o grego morphe. E “matéria” é a tradução, na mesma língua, para hyle, madeira. Hyle, a matéria, é amorfa, redundância pura, caos, confusão de todas as formas possíveis, ainda não discernidas. Dar uma forma à madeira é fazer uma mesa, é escolher dentre uma das muitas formas potenciais que há nela. É “in-formar” a madeira, levar uma forma para dentro dela.
In-formar é, desse modo, sempre reduzir, sacar uma aposta do tesouro dos possíveis. E onde aqui se fala metaforicamente de madeira leia-se ferro, argila, ar, água, fogo. Deus in-formou o barro com Adão. A informação não pode ser pura, esse “in” remete necessariamente para algo que é formado dentro de alguma coisa, que é in-formado, para uma fronteira que precisa ser atravessada.

Não há Internet sem backbones, sem estruturas de redes físicas, sem ondas eletromagnéticas. Ondas eletromagnéticas são vibrações de partículas, elas carregam em si a hyle mesmo quando atravessam o vácuo. Veja-se, nesse sentido tanto a mecânica quântica quanto a teoria da relatividade.

Corte-se um fio de transmissão elétrica, gaste-se a bateria de um tablet e a Internet deixa de existir. Tente-se censurá-la, ela resiste, pode vencer, mas na luta sempre há de surgir uma (in)consciência de limites. A matéria é a soma de muitos possíveis, mas também é um obstáculo, censura e cesura, um “não” sempre presente. Se “matéria” é uma metáfora, “desmaterializar “ também o é. Não há matéria sem forma, nem que essa forma seja a dor da topada, a impossibilidade de prosseguir, a falência. E não há forma sem matéria, sem sinapses de neurônios, sem imagens e ou palavras interiores.

Não há porque pensar em “coisas” apenas como algo que podemos pegar efetivamente com as mãos. Estrelas são coisas e estão fora de meu alcance, posso tê-las como informação visual direta ou indireta, por meio de telescópios poderosos. Da mesma forma, não posso pegar propriamente micróbios com as mãos, não posso sequer vê-los ou senti-los, mas posso “pegá-los” na forma de uma doença, vírus inserido no programa “normal” de meu corpo, informação indesejada.

Falar em “forma” e “matéria”, concebê-las ou negá-las já é informar o mundo, mas é preciso um mundo para ser informado, para ser formado. Ele, contudo, também não existe, se não como mera possibilidade, antes de ser reduzido pela informação.

Interessante isso. A matéria é que o verdadeiro terreno do virtual, do potencial. Lembre-se que “virtual”, semanticamente, é “possível”, opõe-se à “atual”. Isso que chamamos hoje de “virtual” é na verdade o “atual”, a concretização na forma de “zeros” e “uns” de todos os atuais possíveis contidos na matéria de que são feitas as redes físicas, as ondas eletromagnéticas, as sinapses de programadores e usuários.

Essa inversão de sentidos não é inocente. Ela cria uma cortina de fumaça, impede que se vejam os limites da matéria na informação, limita essa informação. Em outros tempos, chamava-se a isso de ideologia, uma espécie de informação que faz eco em si mesma.

domingo, 27 de junho de 2010

O futuro dos jornais?

Dois dos principais jornais brasileiros passaram por reformas recentes, que não se resumem ao aspecto gráfico, mas, independentemente dos exageros de marketing, procuram sintonizar os velhos cadernos impressos com o mundo da Internet. São os casos de O Estado de S. Paulo e da Folha de S. Paulo. O primeiro saiu na frente, em março, e a segunda apresentou as mudanças em maio. Os dois veículos publicaram cadernos especiais comentando as próprias reformas, que desde já ficam como documentos históricos de uma fase de transição da imprensa brasileira, em que uma mídia secular procura, de forma evidente, manter-se viva diante do avanço das novas tecnologias digitais. Ou talvez fosse menos impreciso falar de uma fase de transição dos veículos de comunicação brasileiros, em que uma forma secular, impressa, procura manter-se viva diante dessas novas tecnologias.

O caderno do Estado, datado de 14/03/2010, tem um título bem mais comedido – "Jornalismo renovado" – enquanto o da Folha, de 23/05/2010, apela para o superlativo – "Novíssima!" – que o diário ostenta também em seu mais recente caderno cultural. Em ambos, todavia, a toada é muito semelhante: complementaridade entre mídias impressa e digital, convergência, renovação gráfica em busca de mais legibilidade (o Estado chegou a criar novas fontes exclusivas) e da incorporação de mais informações visuais.

O confronto (ou a convergência) com a Internet é simbolizado, nos dois casos, pela presença de reproduções do iPad – no caso da Folha já mostrando uma página da Folha.com e, no do Estado, uma reprodução da versão eletrônica do The New York Times.

Em ambos os cadernos, há também um apelo à história, com a Folha destacando as suas várias reformas gráficas e editorais num infográfico, e o Estado mostrando uma sobreposição de primeiras páginas, desde a Província de São Paulo até uma edição de março de 2010, já no novo design, cuja modernidade se procura ressaltar com o prolongamento do jornal num enquadramento que lembra o de um e-reader.

O título dessa incursão histórica do Estadão – “Em 135 anos, história e credibilidade” - é bem indicativo do subtexto que se procura transmitir. Na chamada da primeira página do caderno, também se fala de “tradição e credibilidade”. A Folha fala em “jornalismo preciso e confiável” e traz um artigo que se intitula... “Credibilidade em tempo real”.

Em outras palavras, num mundo em que tudo que é sólido se desmancha no ar, num ambiente em que pululam informações de todos os lados, os dois jornais apelam para um argumento de autoridade, garantida por sua histórica atuação, capaz de lhe dar essa anunciada credibilidade.
Isso se torna evidente no texto de Otávio Frias Filho – “7 vidas do jornalismo” - em que diz:

Ninguém contesta, é claro, que a evolução dos meios eletrônicos democratizou o acesso às informações. Nem que a conexão em rede fez surgir uma multiplicidade de formatos jornalísticos, estimulando a diversidade da oferta.
Mas muito desse novo jornalismo tem qualidade discutível, quando não é produto de mera pirataria. Os blogs e o jornalismo cidadão parecem oportunidades promissoras, mas quase sempre seu alcance fica limitado, seja em termos de recursos ou abrangência, seja porque expressam visões demasiado particulares e engajadas.”
Para piorar, o jornalismo que emerge está eivado de entretenimento, culto à celebridade, inconsequência.
(...)
Conforme mais pessoas imergem no oceano de dados e versões que giram pela rede, maior a demanda por um veículo capaz de apurar melhor, selecionar, resumir, analisar e hierarquizar. Esse veículo, no papel ou na tela, se chama jornal.


Interessante que essa palavra “hierarquizar”, sem o sentido de dominância de um item sobre outro, ecoa em “organizar”, expressão que se repete também ao longo dos dois cadernos dos jornais concorrentes.

Esse é o serviço que ambos oferecem na balbúrdia do novo mundo: organizar e autorizar as informações, num ambiente em que se torna cada vez mais dificil discernir a pirataria, o boato, os particularismos interessados. Para isso, oferecem um mesmo valor, a autoridade sedimentada na história e na disponibilidade de recursos com que outros não podem contar. Nesse último aspecto, não por acaso, o Estado fala de sua saúde financeira e a Folha estampa uma montagem fotográfica de sua redação, chamada de “ centro captador de notícias 24 horas”.

No caso do Estado, a referância ao passado é evidente até no logotipo: apesar da reforma gráfica, manteve-se a imagem de um estafeta a cavalo, sobraçando jornais e fazendo-se anunciar por uma espécie de trombeta.

Nessa busca, todavia, é preciso se adaptar, procurar a diversidade que há na Internet. O Estado fala se aproximar das redes sociais e, na sua versão da Internet, romper com o “conceito já ultrapassado de portal”. Fala também em “80 blogs assinados por jornalistas do Estado”. A Folha, por sua vez, anuncia os seus 29 novos colunistas, que vêm contemplar um time de mais de 100 – ainda que, cá entre nós, alguns sejam de qualidade e credibilidade no mínimo discutível.

Nessa brincadeira toda, uma propaganda da reforma da Folha surge quase como um grito inconsciente. Nele, uma jovem segura sorrindo o jornal impresso, que serve como quadro maior, como um gigantesco iPad, que se desdobra, num jogo de boneca russas, num rapaz, que segura um notebook, que reproduz a Folha.com com a imagem de umvelho, que exibe um netbook, que, por sua vez, veicula uma imagem da Folha de S. Paulo com uma mulher, que carrega um celular estampando a Folha.com...

“Não dá pra não ler/acessar_baixar_twittar_Folha_o jornal do futuro” – eis o que diz o slogan gráfico ao pé da página.

Mas nessa imagem – óbvia expressão de um desejo – o velho jornal impresso travestido de e-reader é que define as fronteiras de todas as outras versões.
Apenas o futuro é que poderá dizer se será assim mesmo. Mas, além dos efeitos mais claramente marqueteiros, não deixa de haver um ar de déjà vu nisso tudo.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Máquinas e homens


Estou lendo Uma filosofia do design – a forma das coisas, de Vilém Flusser, em edição portuguesa recentemente lançada pela editora Relógio D´Água. No capítulo 7, “A alavanca passa ao contra-ataque”, encontro o seguinte trecho:

As facas de pedra (...) são umas das máquinas mais antigas. São mais antigas do que o homo sapiens sapiens, e funcionam ainda hoje porque não são orgânicas, mas sim de pedra. Provavelmente, o homem paleolítico também tinha à sua disposição máquinas vivas, como os chacais, de que se servia durante a caça como prolongamento das pernas e como garras. Enquanto garras, os chacais não são tão estúpidos quanto as facas de pedra; mas, em contrapartida, as facas de pedra são mais duradouras. Isso pode ser um dos motivos por que até a época da Revolução Industrial foram utilizadas quer máquinas “inorgânicas”, quer orgânicas: facas e chacais, alavancas e burros, pás e escravos, de modo a poder desfrutar da resistência de uns e da inteligência de outros. Mas as máquinas “inteligentes” (chacais, burros e escravos) são estruturalmente mais complicadas do que as “estúpidas”. É este o motivo pelo qual se deixaram de utilizar a partir da Revolução Industrial.

Num livro sobre o design, Flusser tem um desígnio bem claro ao dizer isso. Seu objetivo é destacar o que ele chama de “retaliação das máquinas” na sociedade pós-industrial. Por isso, pode-se conceder a licença, ao mesmo tempo “poética” e utilitária, de fingir a inexistência de “máquinas inteligentes” - talvez o melhor fosse dizer "orgânicas" - depois da Revolução Industrial.
Ao ao negar o fim das máquinas vivas, não penso apenas nos sistemas tayloristas tradicionais, com seus movimentos sequenciados a favor da produtividade. Gentis operadoras de telemarketing, com seu atendimento robótico, construído a partir de instruções précodificadas, também são máquinas, talvez menos inteligentes do que os burros, pois empacam menos. Todo o sistema de wetware configura-se como uma máquina - inclusive e talvez principalmente a maioria dos programadores, que não têm consciência dos programas invisíveis aos quais obedecem. Softwares complexos são gerados num mundo maquínico, dotado de inteligência própria. Essa é a verdadeira retaliação. Um mundo de máquinas em que todos são máquinas. Macunaíma sacou isso muito bem às margens do igarapé Tietê: “Os homens é que eram máquinas e as máquinas é que eram homens”.

Isso não quer dizer que devamos jogar os garfos fora e voltar a comer com as mãos. Isso não quer dizer que se deva sonhar com um mundo pré-tecnológico, um paraíso perdido que, na verdade, nunca existiu. O próprio Flusser já apontou caminhos em outros textos. Veja-se, nesse sentido, por exemplo, O universo das imagens técnicas – elogio da superficialidade, para não dizer Filosofia da caixa-preta (que, inexplicavelmente, está esgotado no Brasil). Burros empacam, crianças fazem artes, artistas usam os programas ao revés.

Chaplin, em Tempos Modernos

terça-feira, 1 de junho de 2010

Gilgamesh Bueno


Wilson Bueno. Em: revistazunai.com


Notícia triste, hoje.

Soube agora à tarde, pela Internet, com atraso, que morreu Wilson Bueno.

Os livros dele já fazem parte dessa coisa – sei lá o que seja – chamada Literatura Brasileira.

Isso é verdade até para aquilo que escreveu num portunhol falso como uísque paraguaio, carregado de guarani, verdadeiro e bonito como só a poesia o pode ser, mesmo quando disfarçada de prosa.

Bolero´s Bar. Mar Paraguayo. Os chuvosos. Meu tio Roseno, a cavalo. Amar-te a ti nem sei se com carícias. Manual de zoofilia. Jardim zoológico. Cachorros do céu. A copista de Kafka.

Podem ler. Qualquer um é muito bom.

E tem a quase lenda do Nicolau.

Morreu como? Tudo isso vai ficar.

Maggie Taylor --- all on a summer day. Em: diariovagau.blogspot.com