O título da série propõe histórias de amor. Mas Ruffato, indócil, burlou o pedido e entregou uma ficção em que os amores são coadjuvantes. O motivo principal, no caso, é a jornada de um homem comum, desadequado do mundo, como todos os homens o são, mais ou menos.
A “Nota” que precede as duas partes em que se divide Estive em Lisboa e lembrei de você diz que o livro é
“(...) o depoimento, minimimamente editado, de Sérgio de Souza Sampaio, nascido em Cataguases (MG) em 7 de agosto de 1969, gravado em quatro sessões, nas tardes de sábado dos dias 9, 16, 23 e 30 de julho de 2005, nas dependências do Solar dos Galegos, localizado no alto das escadinhas da Calçada do Duque, zona histórica de Lisboa. A Paulo Nogueira, que me apresentou a Serginho em Portugal, e a Gilmar Santana, que o conheceu no Brasil, oferto este livro ”
Ou seja, o que Ruffato propõe é uma trama com ares de verdade, endereço preciso, gravada em datas bem marcadas, com um personagem pretensamente real, cuja existência poderia ser atestada por determinadas pessoas. A narrativa de um pobre-diabo que, bem menos que herói, é vítima de acontecimentos que não pode compreender em sua inteireza. Alguém que, logo na apresentação do livro, logo deixa de ser identificado com o formal “Sérgio de Souza Sampaio”, para se transformar num “Serginho” que - considerando uma etimologia que pode ser falsa, mas é muito popular - já traz inscrita em seu nome a condição de servo dos acontecimentos, agravada ainda por um diminutivo que, antes de ser carinhoso, expressa a pequenez daqueles que nos são inferiores, que têm a nossa simpatia justamente por causa disso.
Como registro “minimamente editado” de um depoimento, o texto somente poderia ser marcado por forte oralidade. Oralidade literária, seja bem dito, tão diferente e tão parecida com a fala de alguém, que acaba por se revestir daquela verdade irretorquível do que não existe no mundo. A criação dessa fala muito própria, em que o regional surge mais do ritmo e da sintaxe do que léxico, ao mesmo tempo tão realística e tão poética, é, sem sombra de dúvida, a marca de um escritor de talento – ainda mais porque ela não se presta apenas à pseudocaptura de um fragmento do mundo, mas, como tentarei mostrar a seguir, empenha-se em mostrar ao mesmo tempo, a metamorfose desejada por Serginho e a impossibilidade de que ela aconteça.
Em seu depoimento, a fala de Serginho desenha-se como um fluxo de consciência que, apesar de inúmeros volteios e desvios, caminha inexoravelmente para um final anunciado logo nas primeiras linhas do livro – isto é, o momento comezinho e enorme em que a personagem volta a fumar.
A narrativa estrutura-se, de certo modo, em torno desse ato. Isso se evidencia não só por ela se dividir em duas partes que trazem o fumo em seu título – “Como parei de fumar” e “Como voltei a fumar” –, mas porque as atitudes anunciadas por esses títulos são reveladoras da psicologia da personagem e marcam momentos capitais de sua trajetória.
Na primeira dessas partes, Serginho está em sua cidade natal, Cataguazes, na Zona da Mata mineira. A personagem é um homem ingênuo, um gauche, de poucos recursos, financeiros ou intelectuais, sem muita consciência da mediocridade, tanto da própria quanto da realidade circundante. Carregado pelos acontecimentos, vive pequenos amores e percalços, joga peladas de fim de semana, embriaga-se pelos botecos da cidade, casa-se por causa de uma gravidez indesejada e sob a ameaça de um trabuco com um moça “de ideia fraca”, que acaba internada, perde o filho para os parentes dela, é explorado por familiares seus e da mulher, até que acaba por ser despedido do emprego numa fábrica local.
Daí, meio sem querer, surge a idéia de buscar fortuna em Portugal, como poderia aparecer outra qualquer. A partida de Serginho contudo, não é propriamente um ato de vontade: depois de falar da viagem como uma bravata, ele vai-se deixando levar pelos acontecimentos, empurrado pelas pessoas, até que, um pouco para não fazer feio, um pouco para fugir dos problemas, um pouco porque tomado de uma ingênua esperança, encontra-se em um ônibus para o Rio de Janeiro, onde deverá pegar o avião para Lisboa.
Trata-se, portanto, de uma partida que não é uma decisão, é um deixar-se levar - como quando Serginho decidira antes parar de fumar, convencido por um colega de peladas, médico bem-intencionado, tão interessado em mostrar a eficácia de seu método de “cura” quanto nos pulmões do amigo. Deixar o cigarro, depois de três tentativas frustradas, não deixa de ser uma prova de que é possível vencer. Então, por que não enriquecer num Portugal, que embora não possa ser nem uma miragem, porque não imaginado de modo pleno, pode ser sonhado quase abstratamente, como um lugar outro em que é possível se fazer grande?
Enquanto conta esses incidentes, a prosa de Ruffato cria um Serginho que se desenha numa linguagem cheia de humor e de mineirice, numa fala que, se a narrativa se passasse toda em Minas, poderia levar alguém a classificá-la de regionalista. Mas, tão logo o rapaz chega à Lisboa, palavras do português de além-mar, ou melhor, dos portugueses de muitos mares, de Portugal e da África, começam a se misturar ao seu discurso, numa transformação linguística que, no entanto, não se completa.
É interessante a transcriação que Ruffato faz do suposto depoimento de sua personagem. O que deveria ser fala, ao migrar para a escrita – ou a surgir da escrita que cria uma fala - deixa-se marcar graficamente por variações de letras que instauram uma outra mensagem, paralela à que se enuncia verbalmente.
Assim, na primeira parte do livro, às vezes as palavras vêm grafadas em itálico, como um signo de alteridade, um efeito que visa a marcar uma espécie de “fala do outro”, ainda que ditas sempre por Serginho - palavras terceiras que chegam ao texto depois de uma primeira mediação, num efeito irônico que surge, muitas vezes, antes do escriba que do fictício narrador oral. Na maior parte dos exemplos, são aquelas que usualmente não deveriam integrar o vocabulário de Serginho, que representam a fala de outros personagens ou que desvelem sentidos outros, ênfases tendenciosas. Eis alguns exemplos:
“Ele conclamou novamente a tal Lazinha, que devia de ser a esposa, fazia questão de apresentar o colega de futebol, pra certificar que tratava com pessoas dignas, honestas (...) anunciando entusiasmado que eu só saía dali carregado, e serviu preliminarmente, uma dose de cachaça, da-roça, que engoli sem detença”.
“Mas foi parar de fumar, e as coisas degringolaram na minha vida, e só não desisti daquela empreitada pra não desapontar o doutor Fernando, que adotou uma felicidade irradiante, me expondo pra deus-e-o-mundo como prova inconteste do seu método revolucionário, “Parece indiscutível que a associação de um anticonvulsionante a um antidepressivo, mais um dosamento retrógrado de nicotina”, claro que considerando a pertinácia do paciente (no caso, eu), ´Resulta altamente favorável em casos de abstinência de tabaco (...)´” (p. 21)
“Decorre que sagrou esta uma melancólica união desde a raiz, festança desproporcionada no Clube Aexas pra não sei quantas cabeças, por gosto dos Carvalhos, gente de comer taioba e arrotar pernil, multidão reclamosa, a cerveja e o guaraná, quentes; os espetinhos de churrasco, passados; a maionese, desandada; a música, alta (pros idosos), cafona (pra mocidade); as balas-de-coco, o bolo, minguados (o povo avançou, sem condição sequer pro retrato oficial, mãos sobrepostas na faca); o local, afastado, a noiva, xexelenta (no parecer dos meus); o noivo, otário (no juízo de todos)” (p. 22-23)
Diferentes dicções, ênfases e intenções são marcadas dessa maneira. Cada itálico, no caso, pode fazer uma palavra falar mais do que poderia dizer à primeira vista. Esse tipo de jogo continua em Lisboa. Mas lá, ao lado do itálico, aparece o negrito, para registrar os termos lusos e dos imigrantes africanos, que vêm se juntar à fala de Serginho.
Recordo-me que, numa aula, Arthur Nestroviski alertou ao alunos que o negrito, como recurso gráfico, não deveria jamais ser usado. "Lembrem-se, só há uma regra quanto ao uso do negrito: ele simplesmente não existe" – disse ele. O negrito grita, suja a página, instaura um tipo de desordem visual. O negrito berra uma diferença. Os muitos idiomatismos portugueses e africanos, no texto de Ruffato, criam uma sensação de estranheza. Eles entram no discurso de Serginho, mas ao mesmo tempo estão fora, compõem a fala, mas nela aparecem como incrustações.
É o que se pode notar, por exemplo, no trecho seguinte, em que Serginho trata de Sheila, a brasileira por quem se apaixona. Notar, no excerto, o uso do itálico para destacar um uso específico da palavra “decente” e os lusitanismos que se acotevam entre o mineirês do narrador
“(...) fantasiava um emprego decente numa daquelas lojas da Baixa-Chiado, rua Augusta, rua do Ouro, rua da Prata, rua do Carmo, rua Garrett, ou da Avenida da Liberdade, gastava tardes rondando as montras, cobiçando o trabalho das empregadas de loja, invejando as europeias esverdeadas de tão brancas, a japonesada só-sorrisos, arrastando sacolas entupidas de trens caríssimos, mas nem arriscava, o passaporte irregular, visto de turista, se pega, deportavam ela, sem ai nem ui, botavam ela num avião e, adeusinho, nunca mais, além do quê, parecia que estava escrito na testa Prostituta, onde entrava tratavam ela mal, aos chutos e pontapés, como se portasse sida (...)” (p. 67)
Ocorrências que se repetem na passagem seguinte, em que, todavia, o lusitanismo "pastel" (mais próximo, muitas vezes, do nosso bolinho) vem escrito em itálico:
“Lisboa cheira sardinha no calor e castanha assada no frio, descobri isso revirando a cidade de cabeça-pra-baixo, de metro, de eléctrico, de autocarro, de comboio, de a-pé, sozinho ou ladeado pela Sheila. Com ela de-guia, visitamos um monte de sítios bestiais, o Castelo de São Jorge, o Elevador de Santa Justa, Belém (pra comer pastel), o Padrão dos Descobrimentos e o Aquário, na estação Oriente, um negócio onde o sujeito enlabirinta em um nunca-acabar de peixe, uns baitas de tubarões e arraias, e outros, bostinhas de nada, mais parecendo bando de passarinho avoando em-dentro dágua, um troço impressionante, fora a imundice de estrela-do-mar, ouriço-do-mar, medusa etc., e a geladeira dos pinguins giras e a piscina das lontras exibidas, mas o mais importante mesmo foi andar no teleférico (...)” (p.67-68)
É uma alteridade diferente daquela que se corporifica no uso do itálico, ainda mais estranha porque, nas vezes em que Serginho recorre a um inglês macarrônico, o que diz grafa-se normalmente.
“(...) não é pra me gabar não mas em dois tempos eu já encostava naqueles brancalhões e desatava o meu inglês, Rei ser, Rei mádam, Ria chípe fude, gude fude, uaine, fiche, mite, têm-quíu (...)” (p. 58)
Touché. Os lusitanismos entram no discurso porque Serginho quer integração, quer ser aceito por aquele mundo novo. Mas a alteridade está ali, instransponível. Assim como ele não consegue fazer parte de Lisboa, as palavras da cidade aparecem como estrangeiras em sua fala.
Todavia, não se trata de um problema de Portugal. Seria muito simples traduzir o fracasso do forasteiro vindo de Cataguases por um viés sociológico, falar da dificuldade de integração – real - dos migrantes pobres num país da Europa que, momentaneamente, surge como um novo Eldorado. Não que essa leitura pudesse estar errada. Assim como estaria certa uma outra que falasse da sensação de desterro de qualquer migrante, em qualquer parte do mundo, anunciada de certa forma pela transcrição de um poema de Miguel Torga que serve de epígrafe para o livro. Leituras como essas são possíveis e encontram amparo no texto, em que muitas passagens anunciam o fracasso daquele que vai se aventurar em países distantes. Por exemplo, quando o ônibus está para sair de Cataguases, levando o pobre Serginho, explorador sem jeito de mundos alheios, surge, qual um outro Velho do Restelo, uma “senhora portuguesa (...), franzina e enfermiça na cadeira-de-rodas(...)”, a qual, trazida à presença do novo migrante, aos prantos, num aviso não ouvido, anuncia que “Perdi a esperança de voltar”.
Mas o estranhamento de Serginho é outro, ele já era um desterrado em Cataguazes e o seria também se migrasse para Rio, São Paulo ou Nova Iorque. Os amores expressíssimos vividos pela personagem dão conta de uma espécie de romantismo que não sabe o que é romantismo, fora de época e lugar, quaisquer épocas e lugares. A inocência e inadequação de um homem que casa com uma moça “de ideia fraca” no interior de Minas, que sonha desembarcar casado em Cataguases com uma prostituta “alemoa, mais comprida que eu, cabelo afogueado, olho azul-azul, corpo leitoso transbordando da roupa brilhante” e se desconcerta quando ela não goza com ele, que se apaixona por outra prostituta, uma brasileira, desterrada também, e propõe a ela um impossível casamento, que nunca parece dar dimensão ao que realmente acontece – tais inocência e inadequação seriam a mesma em qualquer canto do planeta.
Seria estragar a leitura contar em detalhes como acaba a aventura de Serginho, esse Ulisses às avessas, que se entregou às sereias sem nem mesmo ouvir a sua música. Mas, pelo dito aqui, já dá para imaginar porque ele volta a fumar. Se quando parou, começaram as desgraças de sua vida, acender o cigarro de novo pode significar derrota e esperança ao mesmo tempo. Gesto simples, mas que, no caso, carrega-se de uma carga trágica. Tragédia moderna, em que não há heroi, mas apenas vítimas, sem o gesto que possa ofender o ethos, sem a hamartia aristotélica das tragédias gregas, tragédia comezinha em que o destino não é um agente cósmico, mas principalmente o resultado de um desencontro entre os entes. Porque, no caso, até os gestos são programados pela falta de jeito - do homem em lidar com o mundo e do mundo em lidar com o homem.