domingo, 11 de outubro de 2009

Espelho sem aço


Espelho sem aço -Waltércio Caldas, 1997
Aço inoxidável e granito preto – 350 cm X 450 cm X 500 cm

Jorge Coli, sem nenhum favor um dos melhores críticos de Arte da atualidade, hoje na Folha de S. Paulo, abrindo artigo sobre a obra “A Coleção”, do artista Pazé, exposta na Galeria Triângulo, em São Paulo:

“Talvez alguém se lembre da expressão antiga. Espelho sem aço refere-se a alguma coisa que não reflete, que bloqueia a vista. `Saia da frente, espelho sem aço`, costumava-se dizer para alguém atrapalhando o olhar. Sabe-se lá por que aço. Talvez alguma palavra técnica.”

Essa expressão era uma das preferidas de meu pai, quando eu era menino. Usava-a geralmente quando estava a ver TV, e eu entrava na sua frente. Outras vezes dizia alternativamente: "Sai da frente, filho de vidraceiro!". De vez em quando, ouvia outras pessoas usando-as, mas talvez fosse mais raro, não sei. Depois, com o tempo, sumiu de meus ouvidos, como tantas outras, caídas em desuso. Quando a gente as ouve por aí, soam como resíduos do passado, deslocadas, ou como madeleines sonoras.

Eu sempre estranhava a frase. O “aço” do espelho, na linguagem popular, é o revestimento metálico detrás do vidro, que lhe dá suas propriedades reflexivas. A menos que houvesse uma nota irônica na frase, portanto, mais do que de opacidade, ela reclamava de um defeito nessa suposta capacidade especular. Se houvesse aço no espelho, quem falava não veria o objeto do outro lado, mas a si mesmo. Parecia-me, assim, que a admoestação, antes de se voltar para um impedimento da visão, era signo de um ego insatisfeito com a interrupção dessa forma de autocontemplação que muitas vezes encontramos nos objetos mais familiares e apaziguadores. Eu sentia isso confusamente, como menino que não conseguia colocar em palavras e nem sequer em pensamento algo que se estranhava numa esfera muito íntima e crespuscular. Sementes de pensamento que precisavam de uma linguagem ainda inexistente para se formular de verdade.

Talvez esses quase-pensamentos não passassem de fantasmas. Talvez eu estivesse, esteja, errado. Afinal, a frase-irmã, sobre o filho de vidraceiro é claramente irônica. Talvez as duas sejam realmente muito parecidas em sua construção. Mas as palavras não são unívocas, vibram em polissemias insuspeitas. Elas têm sombras e desvãos. Quase sempre queremos dizer duas ou muitas coisas ao mesmo tempo. Se escolhemos uma delas entre várias, quase nunca é de graça. As palavras trazem muitas intenções, muitas tensões, que nem sabemos. Elas são perigosas.

Pazé - A Coleção solangeviana.blogspot.com/2009/09/paze-em-col...

Nenhum comentário:

Postar um comentário