quarta-feira, 8 de abril de 2009

Muito além do Cidadão Kane?


A TV digital brasileira voltou recentemente à mídia devido à decisão do Ministério das Comunicações de proibir, pelo menos momentaneamente, a multiprogramação fora do âmbito das TVs públicas. O assunto ganhou um colorido especial, pois a TV Cultura de São Paulo, afrontando a portaria ministerial, chegou a lançar dois canais utilizando a sua faixa de concessão. O Ministro reagiu, dando quarenta e oito horas para que os canais fossem tirados do ar, e ameaçou a emissora paulista de cassação do seu direito de fazer transmissões digitais. A Cultura recuou, e o caso, ainda agora no mês de abril, está na justiça, sem desfecho previsto.

Sobre o incidente, primeiro chama a atenção a pouca cobertura que lhe deram os principais veículos, sinal claro de que a sociedade não está prestando muita atenção ao assunto.

O tom variou muito nos poucos jornais que abordaram o assunto. O mais duro talvez tenha sido o da coluna da Daniel Castro, na Folha de S. Paulo. Segundo o jornalista, “ (...) o ato, assinado pelo ministro Hélio Costa (Comunicações), atende a interesses das grandes redes privadas, que não querem a concorrência de novos canais. Mas prejudica grupos como o Abril, que pretendia transmitir os canais Fiz e Ideal, hoje só na TV paga, nas frequências abertas da MTV.”

Algumas abordagens foram mais brandas. No Portal Terra, em 10/01/2009, a coluna de Cristina de Luca, referindo-se ao affaire Cultura, dizia que o tom do ministro foi “conciliatório”. Depois de expor a posição da Cultura, que defende haver uma brecha legal para a manutenção dos dois canais, haja vista que o Decreto de criação da TV digital se sobreporia juridicamente à Portaria ministerial, a jornalista lembrou que o referido Decreto não menciona claramente a multiprogramação, por um lado, e por outro – “com todas as letras” - estabelece que cabe ao Ministério das Comunicações a emissão de normas complementares sobre o assunto. Isto é, a tal brecha legal defendida pela Cultura não existiria.

Ou seja, estamos diante de mais um imbróglio que se arma em torno de uma tecnologia que chegou cercada de promessas. No fundo, é claro que das principais vantagens oferecidas pela TV digital – alta definição, portabilidade, mobilidade, multiprogramação e interatividade – bem pouco se concretizou até agora.

Fiquemos neste caso, que envolve a multiprogramação. Caso se imagine o espectro radioelétrico como uma estrada em que se reservam faixas exclusivas para cada carro (canais), pode-se conceber a TV analógica como um conjunto de motoristas um pouco tontos, que podem sair de seus limites a qualquer momento. Por isso, cada canal analógico corresponde a uma faixa bastante larga para que os carros não causem interferências nas rotas uns dos outros. Na TV digital, o transporte das informações é mais preciso. Numa mesma largura de faixa, é possível então transmitir uma imagem com bem mais qualidade (informação) ou criar subdivisões para diversos canais, com a trasnmissão de conteúdo mais variado. No caso do padrão japonês escolhido pelo Brasil, é possível transmitir numa mesma faixa um único canal em alta definição ou quatro canais padrão.

Essa facilidade é enxergada por muitos como um caminho de democratização do espectro, permitindo inclusive que mais entidades possam gerar conteúdo televisivo. Essa possibilidade, juntamente com o caráter interativo, poderia fazer da TV, desse modo, antes uma mídia de massas que de massa no sentido tradicional. No limite, seria possível conceber uma multiplicação de canais comunitários, dando voz a universidades, sindicatos e outros organismos representantes da sociedade civil. Ou, por outro lado, seria como se algo da TV a cabo se mudasse para o espectro aberto, sem a necessidade de caríssimas assinaturas por sua audiência.

Um exemplo concreto dessas possibilidades é o projeto da TV Cultura, ameaçado pela atuação do Ministério. A tentativa é de criar uma espécie de novo mundo universitário virtual, por meio de dois canais, o da Univesp e o Multicultura, focados em telecursos e na busca de audiências mais segmentadas.

Mas, no mundo das TVs comerciais, vê-se que há resistências ao uso pleno da tecnologia. Grandes redes objetam que é preciso vender espaço para propaganda, para que seja possível produzir mais conteúdo. Num tempo em que há um redirecionamento das verbas publicitárias, com a dispersão da audiência e a multiplicação das mídias, a ponto de gurus pregarem que estamos próximos do fim do comercial de TV como o conhecemos, é possível entender que haja receio em investir-se em mais canais, o que poderia levar a uma fragmentação ainda maior do público-alvo. Em suma, não adiantaria somar as audiências menores de vários canais para convencer um anunciante a soltar o seu dinheiro. Esse receio é explícito, por exemplo, em excerto de entrevista de Fernando Bittencourt, diretor da área de engenharia da Rede Globo, publicado na Folha de S. Paulo.

Hoje já se acumula no Brasil uma considerável literatura acadêmica sobre a TV digital terrestre. As abordagens são muito variadas e, como sempre que o assunto são as mudanças trazidas por uma virada tecnológica qualquer, é possível encontrar vozes apocalípticas e integradas, convenientemente postadas dos lados de uma trincheira por onde correm águas bastante turvas. Nos meios acadêmicos, as hostes integradas parecem ser mais numerosas, devidamente encantadas com as potencialidades abertas pela nova tecnologia. Pelo menos são mais barulhentas, talvez porque, em termos numéricos, haja bem mais gente que pouco esteja se lixando para isso, enquanto parte dos apocalípticos ache melhor perder o seu precioso tempo com outros assuntos. Todavia, de modo geral, o que se vê mais são discussões sobre as potencialidades da nova tecnologia sob os aspectos de sua interatividade e mobilidade, passíveis de reflexos tanto na forma de as pessoas se relacionarem com a mídia quanto na própria estética televisiva.

Que as possibilidades abertas pela televisão digital – quando ela “pegar” e se “pegar “– são muitas, não há dúvidas. Mas um caso como o que se menciona aqui, referente à regulamentação do uso da tecnologia no mundo real, mostra com clareza que, quando se fala desse tipo de TV, trata-se de bem mais que uma questão meramente de tecnologia, linguagem ou estética. Não há como pensar o futuro de qualquer mídia, principalmente de uma mídia nova, sem entrar no campo da economia política. Isso é ainda mais forte quando se trata de uma mídia que só pode operar em larga escala, como é o caso da TV ou do cinema, para buscar um exemplo mais antigo. Principalmente nesse caso, concorrem para a sua conformação, para a concretização de suas virtualidades, uma série de forças econômicas e políticas, que atendem aos interesses mais diversos.

A televisão – qualquer que seja ela - realmente precisa ser paga por alguém. Ou seja, implica um modelo de negócio ou de financiamento público. Nesse sentido, são bastante conhecidas as mazelas do sistema brasileiro, marcado pela concentração das grandes redes nacionais em umas poucas mãos, caracterizadas por grande força econômica e política. Infelizmente, muito do que esse sistema sempre possuiu de cartorial e fechado no mundo analógico foi trazido para o digital. As capitanias que compõem o espectro radiomagnético continuam a atender a interesses políticos e foram preservadas, basicamente, nas mesmas mãos em que estavam, com o interessante argumento de que era preciso preservar investimentos. Uma tecnologia nova não mereceria que se permitissem novas maneiras de exploração do espectro? A multiprogramação não poderia ser um caminho para isso?

A menos que se acredite na possibilidade de uma sociedade totalmente livre, em que todos os indivíduos e corporações ajustem seus limites naturalmente, seja guiados pelo bom senso, pela bondade ou por uma força invisível qualquer, há de se admitir que as relações entre os vários atores sociais devem ser reguladas. A democracia ainda parece ser o melhor sistema para isso, mas numa sociedade complexa sempre haverá lobbys e movimentos interesseiros, a ponto de Rosseau – um pensador sem dúvida otimista - não ter acreditado que pudessem sobreviver democracias em estados de grande porte. Nesse sentido, pode-se pensar inclusive que o sucesso da democracia encontra-se num ponto de equilíbrio entre a ação de poucos e a informação para muitos, que podem impedir a ação desses poucos sempre que ela interferir no bem geral.

Como estamos numa sociedade capitalista, regulação e modelo de negócio caminham lado a lado. E, como no sistema capitalista tapuia poucos se assentam no topo da cadeia alimentar, sempre é possível pensar que esses poucos estejam agindo para preservar ou ampliar os seus interesses em detrimento de causas mais nobres.

Num cenário como o atual, seria desejável que, enquanto a TV digital não vem de verdade, as outras mídias gastassem um pouco mais de tempo para informarem sobre o que está acontecendo nos bastidores, nesse momento em que se desenha o que será o futuro da TV brasileira. Não podemos esquecer que, mesmo perdendo espaço para competidores como a Internet, a TV aberta continuará sendo por muitos anos uma das principais arenas para o exercício da cidadania.

Debater as suas potencialidades tecnológicas, de que modo elas podem servir aos interesses da sociedade civil, é muito importante para a democracia. Exigir explicações públicas sobre os motivos por que se restringe, ainda que momentaneamente, o uso pleno das novas capacidades tecnológicas, é tão ou mais importante do que discutir o destino de uma verba pública específica. Intelectuais, líderes da sociedade civil, cidadãos de modo geral, deveriam estar preocupados com isso. No entanto, bem poucos parecem ter acordado até agora.