domingo, 29 de agosto de 2010

Leitura e sociabilidade na era dos ebooks

Albert Anker - Die Andacht des Grossvaters - 1893

Eu pretendia prosseguir escrevendo a respeito dos livros digitais tão logo terminei de publicar o último post deste blog. Todavia, uma série de problemas acabou me atrapalhando, de modo que somente volto ao assunto várias semanas depois, embalado agora por um artigo de Austin Considine, publicado originalmente no New York Times e reproduzido, neste final de semana, tanto pela Folha, quanto pelo Estado de S. Paulo, com diferentes traduções.

O texto aborda os ebooks por um viés não muito usual, qual seja o da relação entre sociabilidade e práticas de leitura. É sabido que, ao longo da chamada Idade Moderna, a migração dos livros para códices mais portáteis e o avanço da alfabetização - que tornou as pessoas menos dependentes da leitura por um terceiro - encaminharam essa atividade para uma prática cada vez mais solitária. Surgiu desse modo o clichê do “rato de biblioteca”, ensimesmado, antissocial.

Abrir um livro na sala de espera do dentista ou no metrô é passar uma informação tácita: “Estou ocupado. Não me perturbe”.

O artigo de Considine parte do testemunho de um usuário do iPad. De acordo com ele, as pessoas, ao vê-lo utilizando o aparelho, sempre se aproximam em busca de detalhes, o que não aconteceria quando porta livros convencionais, “feitos de árvores mortas” (expressão constante da tradução de Clara Allain, para a Folha, inexistente na do Estadão). Assim, livros eletrônicos favoreceriam a sociabilidade.


Its a Book-Lane Smith. In: osilenciodoslivros.blogspot.com

A observação, a meu ver, é de uma ingenuidade crassa. As pessoas se interessam porque se trata de uma gadget ainda muito recente, uma novidade tecnológica que vem alimentando os sonhos de consumo de muita gente. Acontecia isso com os telefones móveis em seus primórdios, mas agora ninguém faz isso, a menos que se trate de um aparelho muito diferente, capaz de atiçar a curiosidade e o espírito consumista de quem está ao redor. Veja-se, nesse sentido, também, o uso de instrumentos portáteis de audição musical, como o Ipod. Eles também mandam uma mensagem de “estou ocupado, não me perturbe”, fortalecida no caso pelo isolamento sonoro que o fone de ouvido pode trazer – e que pode existir também em futuros leitores digitais em que as pessoas ouçam música enquanto lêem.

Descontado o interesse pela novidade em si, o papel de chamariz, de “provocador” social, parece-me muito mais próprio do livro convencional, que quase sempre tem uma capa apta a identificá-lo para quem está ao redor e que funciona como uma espécie de cartaz publicitário portátil. Num leitor eletrônico isso não acontece. Ele faz propaganda de si mesmo e não do livro que veicula. Se vejo uma pessoa lendo, por exemplo, Walter Benjamin ou uma história em quadrinhos bacana, sinto-me tentado a conversar com ela. Se lê Paulo Coelho, livros de autoajuda baratos ou qualquer outra coisa que não faça parte de meu horizonte de interesse, posso até me sentir eventualmente tentado a aproximar-me dela, mas por outros motivos que não o livro que carrega.

Assim, certamente não é esse o melhor caminho para abordar a relação entre livros digitais e práticas de sociabilidade. A novidade é efêmera. Comprar literatura para encher um kindle somente será “ in” por pouco tempo. Por outro lado, é possível constituir clubes de leitura de Jane Austen, Machado de Assis ou Shakespeare, bem como de fãs do iPad ou do Kindle, mas, convenhamos, a riqueza de interações possíveis é bem maior no primeiro caso do que no segundo. Não importa se lemos Orgulho e preconceito em inglês ou traduzido, em capa dura, ou numa edição de bolso, ou num iPad – pelo contrário, a própria riqueza de opções é passível de ser aproveitada para enriquecer os laços sociais e intelectuais que esse tipo de experiência propicia.

Há algo nos livros eletrônicos que certamente pode mudar as práticas de leitura, e o próprio artigo de Considine dá uma pista disso. Os aparelhos de leitura eletrônica trazem, se não de forma explícita, como é o caso do iPad, mas pelo menos potencial, a possibilidade de o leitor continuar ligado à Internet, a redes sociais, ou de ouvir música e receber notícias instantâneas enquanto lê. Em outras palavras, além de poderem tornar a leitura mais fragmentada, menos imersiva, permitem que, durante a sua prática, tornem-se acessíveis todas as formas de interação não presencial que as várias redes oferecem. Todavia, parece-me óbvio que essa potencialidade será muita mais explorada durante uma leitura de um romance leve do que a de Kant..

Não é por acaso que, no mesmo artigo, apareça também a decaração de uma usuária do Kindle que o apresenta como “um modo mais fácil do que um livro para afastar as pessoas”. Um Kindle, mais do que um iPad, é um livro tradicional, num papel eletrônico e sem uma capa criada para dar uma pista do que a pessoa lê (o que não quer dizer que não desperte curiosidade e abordagens mais e menos indelicadas).

Um e-reader como o Kindle da Amazon ou o Alfa da Positivo, entre outros, oferecem maior facilidade de armazenamento, acesso e pesquisa, numa espécie de “evolução” do papel, mas têm uma capacidade menor de mudar seja a construção textual seja a leitura. O iPad, ao permitir conceitualmente, a exibição e produção de textos que mesclem escrita, imagens e sons apresenta um potencial mais subversivo nesse sentido.

Como já especulei na última postagem, provavelmente as duas experiências vão convergir num futuro próximo. Nesse momento, os e-readers farão pelo mundo da escrita algo muito parecido ao que as TVs fizeram pelo das imagens e dos sons, com as diferenças próprias de cada tecnologia. A TV não matou o cinema, mas virou mais uma possibilidade de ele chegar até as pessoas. O cinema que chega pela TV já é outro cinema, mesmo que numa tela de 90 polegadas, de alta definição e sem inserções publlicitárias. Além de veicular e modificar as linguagens do circo, do teatro, do rádio e do cinema, a TV criou uma linguagem própria.

O e-reader também fará isso. Pessoas continuarão a ler Machado, Pessoa, Guimarães Rosa e Shakespeare. Determinados escritores foram consumidos de forma diferente nos folhetins de jornal, em edições de capa dura e em livros de bolso e ganharão novas formas de leitura nos ebooks. Novos gêneros e formas de escritura surgirão, sem que as antigas desapareçam. Edições de papel apelarão cada vez mais para uma estética própria e procurarão valorizar o tátil e o livro como objeto. Textos aptos a uma leitura mais fragmentária e menos imersiva conviverão com outros mais lineares, intensivos e exigentes de lentidão. E o leitor desses últimos continuará assistindo a novelas de TV enquanto conversa com a família ou a partidas de futebol no barzinho da esquina, jogando videogame e indo ao cinema ou ao teatro.

Afinal, não precisamos ser limitados. E os laços sociais – sejam os presenciais da conversa e do abraço ou os estabelecidos nas redes informáticas – só têm a ganhar com isso.

Tom e Jerry - Chuck Jones. In: osilenciodoslivros.blogspot.com

domingo, 8 de agosto de 2010

De novo, livros impressos e ebooks




De uns tempos para cá, parecem ter ganhado corpo as discussões em torno dos chamados livros digitais. Apocalípticos e integrados saem a campo para discutir se estamos próximos do fim do livro e da leitura tal como os conhecemos, ou se diferentes tecnologias e modos de ler conviverão daqui para a frente. Como amador, eu mesmo andei dando uns pitacos em uma postagem anterior. O assunto me interessa muito, pois gosto dos livros, da leitura, das narrativas e da poesia – destaco de propósito cada uma dessas entidades, pois a poesia, por exemplo, não tem a ver necessariamente com leitura, que, por sua vez, não depende unicamente do livro.

Tais discussões, parece-me, concentram-se em alguns pontos principais que, obviamente, se entrelaçam e se desdobram.

O primeiro – o mais visível, o mais falado pelo menos - é se os atuais suportes da palavra escrita – não só o livro, mas também o jornal e a revista – vão desaparecer. Como defendi na já mencionada postagem anterior, não creio nisso. Acredito apenas que vão acontecer alguns deslocamentos. Os atuais veículos impressos vão se aninhar em nichos bem específicos, pelo menos temporariamente.

Afinal, ainda há público para os long-plays de vinil. O códice é confortável, charmoso e continuará sendo um bom suporte para romances, grafic novels, livros de arte, criações diversas que se aproveitem dos potenciais e limites da página em papel. Creio mesmo que ele vai sobreviver mais que os jornais e as revistas, que tendem a se hibridizar numa convergência entre Internet e TV digital.

O livro é veículo de uma informação mais permanente, decantada. O jornal e a revista, por natureza, têm caráter mais efêmero, defrontam-se mais diretamente com a rapidez da Internet. A TV e o rádio não conseguiram matá-los por serem inteiramente outras linguagens, mas as novas mídias são capazes de mesclar a maioria das vantagens de cada uma delas. Periódicos com longa história (vejam o JB, no Brasil, a Newsweek nos Estados Unidos) vão continuar quebrando e encolhendo, e os que resistirem, antes que mídias de massa, vão se transformar, cada vez mais, em mídias de nichos. Não dá para imaginar muito além disso. A história é longa, e somos curtos, de idéias e anos.

O argumento da coexistência histórica das mídias é o mais comum entre aqueles que defendem uma longa sobrevivência dos atuais suportes. Ele é que aparece, por exemplo, no recém-lançado _ não contem com o fim do livro, interessante conversa entre Umberto Eco e Jean-Paul Carriére, intermediada pelo jornalista francês Jean-Philippe de Tonnac. Transcrevo aqui o título como grafado na capa da edição brasileira, em minúscula e com underline no início, como um resíduo de escrita informatizada, numa espécie de ato falho ou provocação editorial (a edição original, francesa, não é assim)... Eis o que diz Eco, em trecho transcrito na contracapa:

“(...) o e-book não matará o livro – como Gutenberg e sua genial invenção não suprimiram de uma dia para o outro o uso dos códices, nem este, o comércio dos rolos de papiros ou volumina. Os usos e costumes coexistem e nada nos apetece mais do ue alargar o leque dos possíveis. A fotografia matou o quadro? A televisão, o cinema.? Boas-vindas então às pranchetas e periféricos de leitura que nos dãos acesso, através de uma única tela, à biblioteca univeral doravante digitalizada.”

Sim, diferentes linguagens convivem, hoje temos peças de teatro, filmes para cinema, filmes para TV, filmes para Internet, bem como as mídias mais novas podem servir de veículo para as mais antigas. Mas certamente o teatro não é mais o mesmo depois do cinema e nem esse depois da TV. O uso de manuscritos, por sua vez, desapareceu como modo de disseminação de obras escritas, fora casos especialíssimos. As transições entre os suportes são cada vez mais aceleradas, acompanhando a velocidade crescente do desenvolvimento tecnológico. Resta saber, desse modo, se as mudanças aqui discutidas estão mais próximas daquelas que ocorreram entre o teatro e o cinema, daquelas entre as diversas tecnologias históricas de impressão ou entre o manuscrito e a imprensa.

Deriva-se aí para um outro ponto da discussão, fortemente entrelaçado com o primeiro, e que é basicamente uma questão de design e tecnologia. Existem reais vantagens na troca dos livros por ebooks? Que tipos de leitor para ebook sobreviverão?

Nesse aspecto, Umberto Eco é peremptório: o livro impresso é como a colher e a roda, uma criação definitiva, que não pode ser aperfeiçoada e substituída.

Mas será isso mesmo?

O códice é fácil de manusear, mas é difícil de guardar. Consome espaço, e espaço é dinheiro. O livro nem sempre teve essa forma. Antes – apenas para ficar em uma de suas muitas manifestações – foi volumen, o rolo de pergaminho dos antigos romanos. Uma forma substituiu a outra justamente porque o códice era mais fácil de ser arquivado e consultado, além de conseguir guardar mais informação num mesmo espaço físico (faça a experiência: transcreva Guerra e Paz, com o mesmo tamanho de letra, para o formato de rolo e coloque-o na estante). O livro impresso substituiu o manuscrito porque era de produção mais rápida e mais barata, podendo gerar uma quantidade de cópias muito maior num mesmo período de tempo.

O livro digital é tudo isso: é mais fácil de ser arquivado, consultado, pesquisado, guarda mais informação num mesmo espaço físico, tem produção (e distribuição) mais rápida e mais barata, quando comparado com o livro de papel.

Por que imaginar que a história não se repetirá? Lembre-se que, nos primeiros tempos da imprensa, havia os defensores intransigentes dos manuscritos, a dizer que os incunábulos eram feios, sujos, não tinham como reproduzir as belas iluminuras das edições produzidas à mão...

Pense-se no seguinte: a diferença de preço entre uma edição digital e um livro de papel (cerca de 30% hoje), em breve, já será capaz de financiar a compra do e-reader para aqueles leitores que comprem pelo menos um livro por mês. Isso hoje ainda não é realidade. Atualmente, ainda sai mais barato comprar os livros tradicionais, mesmo que sejam mais caros individualmente, por não dependerem da aquisição de um suporte externo - a menos que a pessoa se disponha a ler seus ebooks num computador comum, que já use para outros fins, o que é bastante desconfortável.

Como exercício de futurologia, penso, por outro lado, como seria bom ler, por exemplo, A linguagem secreta do cinema, de Carriére, com a possibilidade de, a cada nome de filme citado, ser capaz de navegar para as imagens respectivas. Quando li pela primeira vez Jean Vigo, de Paulo Emílio Salles Gomes, há mais de vinte anos, tinha que me contentar em imaginar as cenas dos filmes mencionados, a que nunca assistira e que não tinha como assistir numa cidadezinha do interior de São Paulo. Recentemente, saiu uma bela edição da Cosac Naify, com a opção de ser adquirida junto com o DVD. Imagine agora uma versão digital que possibilitasse a navegação direta entre textos e imagens. Ou então ler Uma Nova História da Música de Otto Maria Carpeaux, ou O Som e o Sentido de João Miguel Wisnick com as mesmas facilidades...

Dizer que os livros digitais dependem de energia elétrica e que o livro de papel pode ser lido apenas com a luz solar pode ser uma ótima boutade, mas não resiste a uma análise mais séria. Quanta energia é necessária para produzir, distribuir, guardar e ler os livros de papel atuais? Sinceramente, num mundo em que voltássemos a ter o sol como única fonte de luz, os homens provavelmente teriam outras preocupações, e livros, muito mais do que hoje, seriam objeto de consumo de minúscula parcela da população...

Poderíamos, do mesmo modo, defender a vantagem das solas dos pés em relação aos automóveis, ônibus, trens e aviões. Mas quantos o fariam seriamente?

Sejamos realistas. Os e-readers e tablets reais têm ainda muita limitações, não só quando se pensa nas versões impressas, mas também nas possibilidades futuras. Essas limitações materializam-se, atualmente, em alguns embates, por exemplo, entre os fãs do Ipad – o computador portátil, tipo tablet, da Apple - e os do Kindle – o leitor digital exclusivo da Amazon. “Não dá para ler o Kindle no escuro”. “ Não dá para ler usando o Ipad à luz do sol”. “O Kindle não tem cor e não permite uma leitura mais interativa”. “A tela do Ipad cansa”. “O ipad é apenas um iphone que que não cabe no bolso”.

Há algum tempo, conversando com amigos, brinquei que estava faltando apenas um chinês lançar um aparelhinho que conjugasse a tela de tinta eletrônica do Kindle com a tela interativa do Ipad. Pois não é que a empresa brasileira Positivo anunciou recentemente que estara lançando um tablet com essas características em 2011? E a Amazon também promete para o ano que vem o seu e-reader com páginas coloridas. Num cenário como esse quem acredita que não é uma questão de (muito pouco) tempo termos opções com telas ergonômicas para a leitura e plenamente interativas? Enquanto isso, podemos consultar enciclopédias e livros didáticos em tablets, ler romances estrangeiros mais baratos em e-readers, clássicos em edições de bolso e nos deliciar com grafic novels e livros de arte em volumes cujas imagens parecem trazer a textura dos originais. Desde que se tenha gosto, tempo e dinheiro, é claro. Mas por quanto tempo?
(continua no próximo post)

E-reader da Positivo em lançamento no Brasil, carregado com edição de O Príncipe, de Maquiavel, da Penguin/Companhia das Letras (cujo contrato de cessão da marca prevê que todos os títulos deverão ser lançados também em formato digital)

domingo, 1 de agosto de 2010

Voltando de Alhambra


Pois é. Deixei o Ágora parado mais de um mês. Nesse meio tempo, muito trabalho e uma viagem maravilhosa à Espanha – Sevilha, Córdoba, Granada, terras quase de sonho, em que voltei a acreditar que um exército de mouros mágicos possa, de repente, surgir à nossa frente. Alhambra é um alumbre.


Enquanto isso, se foram Saramago e Roberto Piva. Num dos meus últimos posts, havia transcrito texto de Claúdio Willer em que se mencionava a doença que acabaria por matar aquele que talvez seja o mais paulistano dos poetas. Cheguei a escrever necrológios, mas tanto se falou sobre a morte dos dois que prefiro me calar agora. Ficam os livros, maiores que qualquer palavra que eu possa dizer. Paranoia e O memorial do convento falam por si. Os textos que rascunhei, livres da emoção do momento, daquilo que têm de circunstancia, devidamente revistos, talvez signifiquem mais daqui a algum tempo. Talvez. ...