Eu pretendia prosseguir escrevendo a respeito dos livros digitais tão logo terminei de publicar o último post deste blog. Todavia, uma série de problemas acabou me atrapalhando, de modo que somente volto ao assunto várias semanas depois, embalado agora por um artigo de Austin Considine, publicado originalmente no New York Times e reproduzido, neste final de semana, tanto pela Folha, quanto pelo Estado de S. Paulo, com diferentes traduções.
O texto aborda os ebooks por um viés não muito usual, qual seja o da relação entre sociabilidade e práticas de leitura. É sabido que, ao longo da chamada Idade Moderna, a migração dos livros para códices mais portáteis e o avanço da alfabetização - que tornou as pessoas menos dependentes da leitura por um terceiro - encaminharam essa atividade para uma prática cada vez mais solitária. Surgiu desse modo o clichê do “rato de biblioteca”, ensimesmado, antissocial.
Abrir um livro na sala de espera do dentista ou no metrô é passar uma informação tácita: “Estou ocupado. Não me perturbe”.
O artigo de Considine parte do testemunho de um usuário do iPad. De acordo com ele, as pessoas, ao vê-lo utilizando o aparelho, sempre se aproximam em busca de detalhes, o que não aconteceria quando porta livros convencionais, “feitos de árvores mortas” (expressão constante da tradução de Clara Allain, para a Folha, inexistente na do Estadão). Assim, livros eletrônicos favoreceriam a sociabilidade.
Its a Book-Lane Smith. In: osilenciodoslivros.blogspot.com
A observação, a meu ver, é de uma ingenuidade crassa. As pessoas se interessam porque se trata de uma gadget ainda muito recente, uma novidade tecnológica que vem alimentando os sonhos de consumo de muita gente. Acontecia isso com os telefones móveis em seus primórdios, mas agora ninguém faz isso, a menos que se trate de um aparelho muito diferente, capaz de atiçar a curiosidade e o espírito consumista de quem está ao redor. Veja-se, nesse sentido, também, o uso de instrumentos portáteis de audição musical, como o Ipod. Eles também mandam uma mensagem de “estou ocupado, não me perturbe”, fortalecida no caso pelo isolamento sonoro que o fone de ouvido pode trazer – e que pode existir também em futuros leitores digitais em que as pessoas ouçam música enquanto lêem.
Descontado o interesse pela novidade em si, o papel de chamariz, de “provocador” social, parece-me muito mais próprio do livro convencional, que quase sempre tem uma capa apta a identificá-lo para quem está ao redor e que funciona como uma espécie de cartaz publicitário portátil. Num leitor eletrônico isso não acontece. Ele faz propaganda de si mesmo e não do livro que veicula. Se vejo uma pessoa lendo, por exemplo, Walter Benjamin ou uma história em quadrinhos bacana, sinto-me tentado a conversar com ela. Se lê Paulo Coelho, livros de autoajuda baratos ou qualquer outra coisa que não faça parte de meu horizonte de interesse, posso até me sentir eventualmente tentado a aproximar-me dela, mas por outros motivos que não o livro que carrega.
Assim, certamente não é esse o melhor caminho para abordar a relação entre livros digitais e práticas de sociabilidade. A novidade é efêmera. Comprar literatura para encher um kindle somente será “ in” por pouco tempo. Por outro lado, é possível constituir clubes de leitura de Jane Austen, Machado de Assis ou Shakespeare, bem como de fãs do iPad ou do Kindle, mas, convenhamos, a riqueza de interações possíveis é bem maior no primeiro caso do que no segundo. Não importa se lemos Orgulho e preconceito em inglês ou traduzido, em capa dura, ou numa edição de bolso, ou num iPad – pelo contrário, a própria riqueza de opções é passível de ser aproveitada para enriquecer os laços sociais e intelectuais que esse tipo de experiência propicia.
Há algo nos livros eletrônicos que certamente pode mudar as práticas de leitura, e o próprio artigo de Considine dá uma pista disso. Os aparelhos de leitura eletrônica trazem, se não de forma explícita, como é o caso do iPad, mas pelo menos potencial, a possibilidade de o leitor continuar ligado à Internet, a redes sociais, ou de ouvir música e receber notícias instantâneas enquanto lê. Em outras palavras, além de poderem tornar a leitura mais fragmentada, menos imersiva, permitem que, durante a sua prática, tornem-se acessíveis todas as formas de interação não presencial que as várias redes oferecem. Todavia, parece-me óbvio que essa potencialidade será muita mais explorada durante uma leitura de um romance leve do que a de Kant..
Não é por acaso que, no mesmo artigo, apareça também a decaração de uma usuária do Kindle que o apresenta como “um modo mais fácil do que um livro para afastar as pessoas”. Um Kindle, mais do que um iPad, é um livro tradicional, num papel eletrônico e sem uma capa criada para dar uma pista do que a pessoa lê (o que não quer dizer que não desperte curiosidade e abordagens mais e menos indelicadas).
Um e-reader como o Kindle da Amazon ou o Alfa da Positivo, entre outros, oferecem maior facilidade de armazenamento, acesso e pesquisa, numa espécie de “evolução” do papel, mas têm uma capacidade menor de mudar seja a construção textual seja a leitura. O iPad, ao permitir conceitualmente, a exibição e produção de textos que mesclem escrita, imagens e sons apresenta um potencial mais subversivo nesse sentido.
Como já especulei na última postagem, provavelmente as duas experiências vão convergir num futuro próximo. Nesse momento, os e-readers farão pelo mundo da escrita algo muito parecido ao que as TVs fizeram pelo das imagens e dos sons, com as diferenças próprias de cada tecnologia. A TV não matou o cinema, mas virou mais uma possibilidade de ele chegar até as pessoas. O cinema que chega pela TV já é outro cinema, mesmo que numa tela de 90 polegadas, de alta definição e sem inserções publlicitárias. Além de veicular e modificar as linguagens do circo, do teatro, do rádio e do cinema, a TV criou uma linguagem própria.
O e-reader também fará isso. Pessoas continuarão a ler Machado, Pessoa, Guimarães Rosa e Shakespeare. Determinados escritores foram consumidos de forma diferente nos folhetins de jornal, em edições de capa dura e em livros de bolso e ganharão novas formas de leitura nos ebooks. Novos gêneros e formas de escritura surgirão, sem que as antigas desapareçam. Edições de papel apelarão cada vez mais para uma estética própria e procurarão valorizar o tátil e o livro como objeto. Textos aptos a uma leitura mais fragmentária e menos imersiva conviverão com outros mais lineares, intensivos e exigentes de lentidão. E o leitor desses últimos continuará assistindo a novelas de TV enquanto conversa com a família ou a partidas de futebol no barzinho da esquina, jogando videogame e indo ao cinema ou ao teatro.
Afinal, não precisamos ser limitados. E os laços sociais – sejam os presenciais da conversa e do abraço ou os estabelecidos nas redes informáticas – só têm a ganhar com isso.
Tom e Jerry - Chuck Jones. In: osilenciodoslivros.blogspot.com