domingo, 27 de fevereiro de 2011

A praça ampliada

A ágora grega na visão de "The Age of Pericles", de Philipp von Foltz, de 1853
Tem sido muito destacado pela imprensa o papel das redes sociais nos movimentos populares que recentemente se espalharam pelo Oriente Médio, colocando em xeque antigas ditaduras. No caso do Egito, chegou-se a falar de uma autêntica “Revolução do Facebook”.

Interessante, nesse aspecto, é o que diz em depoimento publicado pela Folha de S. Paulo em 22/02/2011 o egípcio Ahmed Maher, um dos principais líderes da revolução que depôs Hosni Mubarak – e o responsável pela página do Facebook que deu origem ao Movimento 6 de Abril:

O Wael Ghonim [executivo do Google que participou de protestos] é meu amigo, mas discordo quando ele diz que essa éa revolução do Facebook. Ele entende de tecnologia, mas não de política. A internet é só uma ferramenta. O que fez a revolução foi a vontade de mudar e a disposição de fazer sacrifícios.

Uma declaração simples, mas que coloca os pingos nos “iis”. Sem negar o papel da internet no que vem acontecendo, é um exagero atribuir à rede mundial o papel protagônico que alguns lhe procuram dar. Os protagonistas são os homens e mulheres que trabalharam por uma ideia e os milhares de cidadãos que saíram às ruas.
A praça pública em que se travavam os debates a respeito da polis - a ágora - teve um papel importante na constituição da democracia grega. A imprensa esteve no centro das revoluções liberais do final dos séculos XVIII e XIX, sem que a praça e as ruas perdessem o seu lugar como campo de debates e embates.

O garoto Gavroche, mártir das barricadas, na pintura de Delacroix A Liberdade guiando o povo

A internet agora simplesmente vem ocupar o seu lugar nesse movimento histórico de ampliação do espaço público. Atribuir-lhe um papel inédito é uma forma de fetichismo e um desconhecimento da história. Cada vez mais é possível, do ponto de vista tecnológico, discutir a política sem a copresença física de todos os cidadãos. Mas ainda é na praça física que desaguam e ganham corpo os debates e convocações, quer se originem no boca a boca, na imprensa ou na internet.

A praça pode ser o lugar dos tanques ou do povo. A imprensa pode ser o espaço do pluralismo democrático ou do pensamento único, quando subjugada pela censura. A internet pode acelerar o fim de regimes podres ou servir de instrumento para os fortes. Mas é não é ela que está fazendo a revolução árabe. Homens e mulheres, na sua condição de cidadãos, é que sempre farão a diferença.

O povo egipcio na praça. Em: http://www.wscom.com.br/noticia/internacional/GOVERNO+DO+EGITO+PROIBE+MANIFESTACOES-100494

domingo, 13 de fevereiro de 2011

De novo, o grande bla bla blá

O caderno “Ciência” da Folha de S. Paulo , em 11 de fevereiro, trouxe reportagem com o título “DNA individual tem mais dados que todos os HDs”. A matéria reporta-se a artigo publicado na revista Science, que analisou os dados produzidos e armazenados entre 1986 e 2007, tanto em meios analógicos (livros, fitas VHS, discos de vinil, etc.) quanto digitais (HDs, CDs, DVDs, dentre outros). Os cientistas chegaram à conclusão que em 2007 todos os dados armazenados pela humanidade chegaram ao montante de 295 exabytes (ou 295 bilhões de gigabytes). Isso equivale, ainda segundo a reportagem, a 314,1 bilhões de músicas em MP3 ou a um 1,8 bilhão de horas de vídeo com qualidade de DVD. Disso tudo, 94% estariam armazenados em formato digital.

A matéria não dá muitos detalhes sobre o grau de redundância que há nisso tudo, isto é, quanto do material analisado não seria mera cópia de outros dados. Diz apenas que “ (...) devido à grande quantidade de fontes, os pesquisadores não se preocuparam se as informações eram inéditas ou repetidas”. Informa, todavia, que “(...) para uniformizar a medição, os cientistas fizeram algo parecido com os softwares de compactação de arquivos – como os do tipo ZIP: diminuíram o tamanho dos arquivos retirando os trechos redundantes das mensagens”.

Em outras palavras, aplicada essa metodologia, os bytes de poemas como “No meio do caminho” de Carlos Drummmond, ou “Kipling revisitado”, caracterizados justamente por uma alta repetição vocabular, necessariamente são muito reduzidos. Um plágio deles, por outro lado, é considerada informação nova.

De qualquer modo, desconsideradas as limitações naturais que há em qualquer abordagem meramente matemática da informação, os números levantados são acachapantes. Minha pobre cabeça não consegue lidar com eles. Todavia, ainda assim, sempre de acordo com a mesma reportagem, há cerca de cem vezes mais informação codificada no DNA humano que em todos os sistemas de armazenamento criados até 2007. Mantida a atual taxa de crescimento, apenas por volta de 2039 a humanidade conseguiria atingir a marca que a natureza imprimiu ao DNA.

Vejam só o espanto: se, até a mesma data, uma equipe de bioinformática conseguisse transcrever, na forma de um programa de computador, as mesmas informações contidas no DNA, tal programa teria tanta informação quanto toda aquela que os pobres homens teriam conseguido armazenar até então! Decodificar todo o genoma humano seria, então, fazer um mapa borgeano, tão completo que pode não servir para nada?

A respeito disso, a Folha informa que "(...) os cientistas ainda debatem se toda a informação contida no DNA humano é fundamental para construir e mantero organismo. Pesquisadores propuseram o conceito de ´DNA lixo´, resquícios no genoma que não serviriam para nada, mas ele tem sido bastante atacado".

Vejam só. Esse "lixo" é redundância ou informação supostamente inútil, "ruído". Como saber? As repetições vocabulares de Drummond e Paes contribuem para dar vida aos seus poemas. Sem elas, a mensagem se perde. Como dar conta disso, de verdade? No meio de tantos dados do DNA, como fazer a exegese "correta"?

Em 23 de março de 2009, portanto há quase dois anos, estimulado por uma nota rapidamente lida na publicação de bordo da TAM, publiquei um comentário sob o título “O grande bla bla blá”. Naquela ocasião, dizia-se que toda a informação digital a ser produzida até 2010 deveria equivaler a 75 pilhas de livros entre a Terra e o Sol. Agora, o artigo da Folha fala que, se toda a informação produzida até 2007 fosse colocada em uma pilha de CDs, ela equivaleria à distância da Terra à Lua. Quem tiver tempo, pode confrontar os dados, para verificar se “batem”...

Nessa coisa toda, não se computaram os bilhetes em portas de geladeira, os recados com batom nos espelhos de banheiro, os poemas xerocados distribuídos em portas de teatros, as cartas dos suicidas, os CDs riscados que alguém vai recuperar, as pobre gravações que candidatos a artistas sertanejos vendem nos botecos de Brasília.

"É o primeiro trabalho a quantificar como seres humanos lidam com a informação". Segundo a Folha é o que teria dito Martins Hilbert, da Universidade da Carolina do Sul, líder do estudo. Interessante, sem dúvida. Esse não deixa de ser o velho e bom sonho da Teoria Matemática da Informação. Mas é preciso qualificar também como esses mesmos seres humanos lidam com essa informação - inclusive como apanham dela, como se perdem em seus meandros e ainda como do lixo fazem brotar obras de arte e conhecimento novo. E esse é um trabalho de Sísifo.

Dá um certo cansaço. Sei agora que meu quinhão em todos os dados armazenados pela humanidade equivaleria a cerca de 61 CDs. Como tenho pelo menos vinte vezes isso, sem contar DVDs, livros e acesso à Internet banda larga e à TV a cabo, sou uma pessoa bem informada? Por que diabos não escrevi, então, um novo Ulisses?

Num CD do Sérgio Mallandro, se eu o tivesse, encontraria tanta informação quanto num LP, digamos, de John Coltrane ou da Badi Assad?

Acho que vou ler o último livro do Gullar. Ou um haikai de Bashô.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

A falsa gueixa e o marginal

Cartaz de Helio Oiticica - Museu é O Mundo

No último final de semana, visitei duas exposições em Brasília: Hélio Oiticica – Museu é o Mundo e Mariko Mori – Oneness. Ambas são marcadas pelo ineditismo. De acordo com a imprensa, a mostra de Hélio é a maior já organizada no Brasil e a primeira que chega à Brasília. É importante também porque, de certa forma, tem um ar de ressureição, depois do susto que todos os que gostam de arte tiveram ao saber do incêndio do acervo do artista no Rio de Janeiro, ocasião em que se chegou a temer pela perda da maior parte de sua produção. No caso de Mariko, que vem ganhando cada vez mais relevância no circuito internacional, trata-se de sua exibição inaugural no país.

Mas não é apenas o que têm de inédito que as aproxima. As duas buscam provocar algo mais do que a mera contemplação, transformar quem as visita em algo além de mero expectador. Nisso não há nada de novo, a procura por diversos graus de interatividade tornou-se um quase lugar-comum das artes há muito tempo. Mas diante dessa constatação, talvez seja interessante pensar nas diferenças que marcam esse encontro com o público nos dois casos.

Oneness, que ocupa vários espaços do Centro Cultural Banco do Brasil, antes de seguir para outras capitais brasileiras, é composta de dez instalações, além de vídeos e fotografias. As instalações são futuristas, impressionam pela tecnologia e pelo excelente acabamento. Os vídeos têm alta definição, são bonitos, extremamente contemporâneos em sua qualidade técnica. A cultura pop japonesa atravessa tudo, cruzando-se com um budismo com muito de new age nas obras mais recentes.

Confesso que as mais antigas é que me falaram mais. Em fotos como Tea Ceremony III e Red Ligth, ambas de 1994, ou Empty Dream, de 1995, Mariko – ex-modelo – posa como figuras femininas saídas de algum mangá, nos dois primeiros casos, ou como uma sereia de ar futurista e articial, no último. As composições são saudavelmente irônicas. Empty Dream retrata uma praia artificial, em que a Mariko-sereia refestela-se numa pose também artifical à frente de um barrigudo senhor japonês que filma o fotógrafo ou quem contempla o quadro. Um mundo de plástico e poses que fala para os olhos e para o cérebro, trazendo à vista mensagens com códigos deslocados.

Os materiais sintéticos e o artificialismo das cores penetram também os vídeos e as instalações, gestadas numa fase posterior da artista, mas aqui a ironia me parece esgarçada, subsituída pouco a pouco por um anseio de unicidade (afinal, a psicanálise já nos ensinou que o irônico depende sempre de uma cisão). Futuro e passado buscam uma atemporalidade mítica que se concretiza, por exemplo, em Transcircle, um círculo céltico, em que pedras são substituídas por vidro brilhante, culminando nas instalações Wave UFO, de 1999/2002 e Oneness, que dá nome à exposição.

A primeira é uma espécie de nave espacial (ou baleia primeva?), que recebe três visitantes por vez. Elétrodos capazes de ler ondas cerebrais são colocados em suas cabeças, traduzindo-as em gráficos que são projetados no teto, representando estados mentais. A leitura da obra depende, então, de um código de cores que representam esses estados. Se todos estiverem bem zens, as cores entram em ressonância.

Oneness, por outro lado, é formada por um conjunto de seis figuras humanoides dispostas em círculo (que juntamente com a esfera são formas recorrentes em toda a exposição) confeccionadas em technogel – material entre o sólido e o líquido e que imita, até certo ponto, a textura de tecidos vivos – que podem ser tocadas pelos visitantes, que então sentem um coração articial bater e podem ver os olhinhos dos robôs se acendendo. Se todas forem tocadas ao mesmo tempo, a instalação inteira se acende. O fato de os visiantes precisarem se ajoelhar para interagir com os humanoides pode servir a várias interpretações.

Os monitores pedem cuidado durante a interação. Afinal, os humanoides são sensíveis e devem ter custado muito caro.

A Revista Bravo traduziu Oneness por "Singularidade". Não me parece que Mariko busque o "Singular", mas o "Único", a noção de unicidade e plenitude que se estampa nesses círculos e nas esferas que se repetem nos vídeos e instalações.

Mas há um excesso de codificação nisso, o que é reforçado pela distribuição de senhas para que os visitantes possam interagir com as obras. Antes daquele deslocamento que se observa nas obras mais antigas, o que se vê aqui é uma necessidade dos códigos – do budismo, da cultura pop, dos panfletos, da fala dos monitores – como uma condição mesma para a interpretação.

Por outro lado, Helio Oiticica – Museu é o o Mundo, compõe-se de uma retrospectiva de toda a jornada do artista brasileiro, começando pelos metaesquemas dos anos 50, passando pelos bólides, núcleos, parangolés, chegando aos penetráveis, essas instalações de grande porte, que precisam de amplos espaços para serem montadas.

Depois de passar pelo Paço Imperial no Rio de Janeiro e pelo Itaú Cultural em São Paulo, a mostra espalha-se agora pelo Museu da República e se excede na Rodoviária, na Funarte e na Casa da Cultura da América Latina, onde também se expõem algumas instalações. Visitei apenas a parte que está no Museu da República.

Não existe aqui o fino acabamento das obras de Mariko, há rebarbas e sujeira, água, areia e pedras como elementos essenciais dos penetráveis. O que se expõe não parece querer falar seja de atemporalidade ou de eternidade (essas duas pontas que se tocam), como acontece na exposição de Mariko, mas de uma precariedade viva, que encontra eco nos vídeos com um ar antigo e rasurado que se integram à mostra. Os objetos-ideia de Oiticica não querem falar aos olhos e à mente, mas mergulhar aqueles que os usam em um festim de sentidos em que o tato e o movimento ocupam um papel relevante. E os parangolés não precisam de folhetos com instruções para serem interpretados, não precisam de interpretação, mas de serem incorporados num jogo entre o corpo e uma forma que resiste a ser única, mas se desdobra em possibilidades no espaço. Mais que usar códigos para promover a interação, mais que deslocá-los, Helio propõe ao público romper com eles. Há mais Dionísio que Apolo aqui.

Se em Mariko o passar do tempo parece ter reforçado a importância dos códigos para a construção de sua obra, em Hélio Oiticica percebe-se uma trajetória de crescente desconstrução deles entre os metaesquemas e os penetráveis.

Helio morreu em 1980, uns bons anos antes de Mariko começar a produzir. Todavia, os dois conjuntos me parecem tão contemporâneos quanto, embora de modos perversamente diversos. Quando olho os vídeos de Museu é Mundo, penso que aquilo é muito anos 1960-1970. Mas vejo que há algo que transcende a percepção histórica, algo que fica, que dialoga com o agora, que recupera o passado como presente e possibilidade de futuro. Os de Oneness parecem esteticamente mais próximos, mas naquilo que buscam de atemporal ou de fusão entre o contemporâneo e o eterno há algo de déja-vu e que talvez já comece a ficar datado (ou a indiciar um tempo).

Vejam as duas exposições.

Mariko Mori - Oneness