domingo, 6 de fevereiro de 2011

A falsa gueixa e o marginal

Cartaz de Helio Oiticica - Museu é O Mundo

No último final de semana, visitei duas exposições em Brasília: Hélio Oiticica – Museu é o Mundo e Mariko Mori – Oneness. Ambas são marcadas pelo ineditismo. De acordo com a imprensa, a mostra de Hélio é a maior já organizada no Brasil e a primeira que chega à Brasília. É importante também porque, de certa forma, tem um ar de ressureição, depois do susto que todos os que gostam de arte tiveram ao saber do incêndio do acervo do artista no Rio de Janeiro, ocasião em que se chegou a temer pela perda da maior parte de sua produção. No caso de Mariko, que vem ganhando cada vez mais relevância no circuito internacional, trata-se de sua exibição inaugural no país.

Mas não é apenas o que têm de inédito que as aproxima. As duas buscam provocar algo mais do que a mera contemplação, transformar quem as visita em algo além de mero expectador. Nisso não há nada de novo, a procura por diversos graus de interatividade tornou-se um quase lugar-comum das artes há muito tempo. Mas diante dessa constatação, talvez seja interessante pensar nas diferenças que marcam esse encontro com o público nos dois casos.

Oneness, que ocupa vários espaços do Centro Cultural Banco do Brasil, antes de seguir para outras capitais brasileiras, é composta de dez instalações, além de vídeos e fotografias. As instalações são futuristas, impressionam pela tecnologia e pelo excelente acabamento. Os vídeos têm alta definição, são bonitos, extremamente contemporâneos em sua qualidade técnica. A cultura pop japonesa atravessa tudo, cruzando-se com um budismo com muito de new age nas obras mais recentes.

Confesso que as mais antigas é que me falaram mais. Em fotos como Tea Ceremony III e Red Ligth, ambas de 1994, ou Empty Dream, de 1995, Mariko – ex-modelo – posa como figuras femininas saídas de algum mangá, nos dois primeiros casos, ou como uma sereia de ar futurista e articial, no último. As composições são saudavelmente irônicas. Empty Dream retrata uma praia artificial, em que a Mariko-sereia refestela-se numa pose também artifical à frente de um barrigudo senhor japonês que filma o fotógrafo ou quem contempla o quadro. Um mundo de plástico e poses que fala para os olhos e para o cérebro, trazendo à vista mensagens com códigos deslocados.

Os materiais sintéticos e o artificialismo das cores penetram também os vídeos e as instalações, gestadas numa fase posterior da artista, mas aqui a ironia me parece esgarçada, subsituída pouco a pouco por um anseio de unicidade (afinal, a psicanálise já nos ensinou que o irônico depende sempre de uma cisão). Futuro e passado buscam uma atemporalidade mítica que se concretiza, por exemplo, em Transcircle, um círculo céltico, em que pedras são substituídas por vidro brilhante, culminando nas instalações Wave UFO, de 1999/2002 e Oneness, que dá nome à exposição.

A primeira é uma espécie de nave espacial (ou baleia primeva?), que recebe três visitantes por vez. Elétrodos capazes de ler ondas cerebrais são colocados em suas cabeças, traduzindo-as em gráficos que são projetados no teto, representando estados mentais. A leitura da obra depende, então, de um código de cores que representam esses estados. Se todos estiverem bem zens, as cores entram em ressonância.

Oneness, por outro lado, é formada por um conjunto de seis figuras humanoides dispostas em círculo (que juntamente com a esfera são formas recorrentes em toda a exposição) confeccionadas em technogel – material entre o sólido e o líquido e que imita, até certo ponto, a textura de tecidos vivos – que podem ser tocadas pelos visitantes, que então sentem um coração articial bater e podem ver os olhinhos dos robôs se acendendo. Se todas forem tocadas ao mesmo tempo, a instalação inteira se acende. O fato de os visiantes precisarem se ajoelhar para interagir com os humanoides pode servir a várias interpretações.

Os monitores pedem cuidado durante a interação. Afinal, os humanoides são sensíveis e devem ter custado muito caro.

A Revista Bravo traduziu Oneness por "Singularidade". Não me parece que Mariko busque o "Singular", mas o "Único", a noção de unicidade e plenitude que se estampa nesses círculos e nas esferas que se repetem nos vídeos e instalações.

Mas há um excesso de codificação nisso, o que é reforçado pela distribuição de senhas para que os visitantes possam interagir com as obras. Antes daquele deslocamento que se observa nas obras mais antigas, o que se vê aqui é uma necessidade dos códigos – do budismo, da cultura pop, dos panfletos, da fala dos monitores – como uma condição mesma para a interpretação.

Por outro lado, Helio Oiticica – Museu é o o Mundo, compõe-se de uma retrospectiva de toda a jornada do artista brasileiro, começando pelos metaesquemas dos anos 50, passando pelos bólides, núcleos, parangolés, chegando aos penetráveis, essas instalações de grande porte, que precisam de amplos espaços para serem montadas.

Depois de passar pelo Paço Imperial no Rio de Janeiro e pelo Itaú Cultural em São Paulo, a mostra espalha-se agora pelo Museu da República e se excede na Rodoviária, na Funarte e na Casa da Cultura da América Latina, onde também se expõem algumas instalações. Visitei apenas a parte que está no Museu da República.

Não existe aqui o fino acabamento das obras de Mariko, há rebarbas e sujeira, água, areia e pedras como elementos essenciais dos penetráveis. O que se expõe não parece querer falar seja de atemporalidade ou de eternidade (essas duas pontas que se tocam), como acontece na exposição de Mariko, mas de uma precariedade viva, que encontra eco nos vídeos com um ar antigo e rasurado que se integram à mostra. Os objetos-ideia de Oiticica não querem falar aos olhos e à mente, mas mergulhar aqueles que os usam em um festim de sentidos em que o tato e o movimento ocupam um papel relevante. E os parangolés não precisam de folhetos com instruções para serem interpretados, não precisam de interpretação, mas de serem incorporados num jogo entre o corpo e uma forma que resiste a ser única, mas se desdobra em possibilidades no espaço. Mais que usar códigos para promover a interação, mais que deslocá-los, Helio propõe ao público romper com eles. Há mais Dionísio que Apolo aqui.

Se em Mariko o passar do tempo parece ter reforçado a importância dos códigos para a construção de sua obra, em Hélio Oiticica percebe-se uma trajetória de crescente desconstrução deles entre os metaesquemas e os penetráveis.

Helio morreu em 1980, uns bons anos antes de Mariko começar a produzir. Todavia, os dois conjuntos me parecem tão contemporâneos quanto, embora de modos perversamente diversos. Quando olho os vídeos de Museu é Mundo, penso que aquilo é muito anos 1960-1970. Mas vejo que há algo que transcende a percepção histórica, algo que fica, que dialoga com o agora, que recupera o passado como presente e possibilidade de futuro. Os de Oneness parecem esteticamente mais próximos, mas naquilo que buscam de atemporal ou de fusão entre o contemporâneo e o eterno há algo de déja-vu e que talvez já comece a ficar datado (ou a indiciar um tempo).

Vejam as duas exposições.

Mariko Mori - Oneness

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