terça-feira, 15 de junho de 2010

Máquinas e homens


Estou lendo Uma filosofia do design – a forma das coisas, de Vilém Flusser, em edição portuguesa recentemente lançada pela editora Relógio D´Água. No capítulo 7, “A alavanca passa ao contra-ataque”, encontro o seguinte trecho:

As facas de pedra (...) são umas das máquinas mais antigas. São mais antigas do que o homo sapiens sapiens, e funcionam ainda hoje porque não são orgânicas, mas sim de pedra. Provavelmente, o homem paleolítico também tinha à sua disposição máquinas vivas, como os chacais, de que se servia durante a caça como prolongamento das pernas e como garras. Enquanto garras, os chacais não são tão estúpidos quanto as facas de pedra; mas, em contrapartida, as facas de pedra são mais duradouras. Isso pode ser um dos motivos por que até a época da Revolução Industrial foram utilizadas quer máquinas “inorgânicas”, quer orgânicas: facas e chacais, alavancas e burros, pás e escravos, de modo a poder desfrutar da resistência de uns e da inteligência de outros. Mas as máquinas “inteligentes” (chacais, burros e escravos) são estruturalmente mais complicadas do que as “estúpidas”. É este o motivo pelo qual se deixaram de utilizar a partir da Revolução Industrial.

Num livro sobre o design, Flusser tem um desígnio bem claro ao dizer isso. Seu objetivo é destacar o que ele chama de “retaliação das máquinas” na sociedade pós-industrial. Por isso, pode-se conceder a licença, ao mesmo tempo “poética” e utilitária, de fingir a inexistência de “máquinas inteligentes” - talvez o melhor fosse dizer "orgânicas" - depois da Revolução Industrial.
Ao ao negar o fim das máquinas vivas, não penso apenas nos sistemas tayloristas tradicionais, com seus movimentos sequenciados a favor da produtividade. Gentis operadoras de telemarketing, com seu atendimento robótico, construído a partir de instruções précodificadas, também são máquinas, talvez menos inteligentes do que os burros, pois empacam menos. Todo o sistema de wetware configura-se como uma máquina - inclusive e talvez principalmente a maioria dos programadores, que não têm consciência dos programas invisíveis aos quais obedecem. Softwares complexos são gerados num mundo maquínico, dotado de inteligência própria. Essa é a verdadeira retaliação. Um mundo de máquinas em que todos são máquinas. Macunaíma sacou isso muito bem às margens do igarapé Tietê: “Os homens é que eram máquinas e as máquinas é que eram homens”.

Isso não quer dizer que devamos jogar os garfos fora e voltar a comer com as mãos. Isso não quer dizer que se deva sonhar com um mundo pré-tecnológico, um paraíso perdido que, na verdade, nunca existiu. O próprio Flusser já apontou caminhos em outros textos. Veja-se, nesse sentido, por exemplo, O universo das imagens técnicas – elogio da superficialidade, para não dizer Filosofia da caixa-preta (que, inexplicavelmente, está esgotado no Brasil). Burros empacam, crianças fazem artes, artistas usam os programas ao revés.

Chaplin, em Tempos Modernos

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