terça-feira, 24 de maio de 2011

Preconceitos



Domingo à noite, assisti, na Globo News, ao trecho de um debate sobre o livro de português Por uma vida melhor, de Heloisa Ramos e outros, selecionado pelo programa de distribuição de livros didáticos do governo federal e acusado pela imprensa de ensinar os alunos de escolas públicas a falarem errado. Ao longo da última semana, já me deparara várias vezes com o mesmo assunto, tanto em jornais quanto na Internet, depois de uma “denúncia” inicial apresentada por um dos grandes diários brasileiros, já nem sei mais qual. Sábado, em O Globo, Wisnick falou do assunto, num texto equilibradíssimo, como tudo o que ele escreve. No domingo, Caetano. E no Estado de S.Paulo , no caderno "Aliás" - que, não custa lembrar, tem por objetivo fazer uma espécie de balanço das principais notícias da semana - , dois artigos, de Sírio Possenti e José de Souza Martins, debruçaram-se sobre o tema. Até a Maria Paula do Casseta e Planeta abordou o affaire em sua coluna na revista dominical do Correio Braziliense.
O fato é que se esbanjou muita tinta e saliva com o pobre livro. Apesar disso, vou gastar aqui uns pixels com ele, pois, sem dúvida, o incidente é sintoma de um fenômeno mais geral.
Na realidade, o livro foi condenado pelo que não disse, de forma apressada, a partir de uma citação tirada de contexto. Não o li – como quase todos que o comentaram – mas é evidente o quanto a condenação foi apressada quando se depara com a mal falada passagem , reproduzida integralmente no artigo de Possenti. Ali se vê que, ao contrário do que muitos disseram, o livro não ensina nada errado, mas frisa bem claramente o que chama de “norma culta”, contraposta à “norma popular”, em que a simples flexão do artigo já é suficiente para indicar o plural.
Ao apresentar as duas normas como possíveis (“você pode falar de um jeito ou de outro”), o livro, por outro lado, critica de passagem os que dizem “o que se deve e o que não se deve falar e escrever, tomando as regras estabelecidas para a norma culta como padrão de correção de todas as formas lingüísticas”. Entre os verbos “poder” e “dever” há duas concepções diferentes de gramática, uma que vê “norma” no sentido descritivo, quase estatístico de conjunto de ocorrências mais comuns – espécie de lei obtida indutivamente - e outra que a enxerga como um modelo obrigatório, do qual devem-se deduzir todas as manifestações concretas, de forma prescritiva.
É fácil de perceber que, no primeiro caso, a língua aparece como uma entidade viva, em que a contribuição milionária de todos os erros pode levar a mutações. No segundo caso, a língua já “evoluiu” e cabe agora mantê-la longe de todos os erros, que somente podem aviltar a sua forma perfeita.
Dizer que a primeira opção tende ao relativismo parece-me reducionista. Parece-me antes que se encaminha para um sistema multipolar, em que “erros” são apenas os escorregões individuais, incapazes de se concretizarem num padrão, numa norma descritiva. Com várias normas possíveis (uma escrita, outra falada, uma culta, outra popular, uma brasileira, outra lusitana, outra caboverdiana etc.), o contexto, a situação, é que vão demonstrar o “acerto” de uso de cada uma delas.
“Você” ou “o alfanje” são “erros” que o uso continuado sacramentou. O primeiro , uma contração assassina de fonemas de “vossa mercê”, e o segundo, uma redundância dos artigos “o” português e “al” árabe. Outros “erros” vão impor-se como norma.
Por uma vida melhor diz que construções como “os livro” devem ser evitadas para fugir ao “preconceito linguístico”. O próprio Word reclama quando escrevo assim, sublinhando de verde a expressão, como errada. “Preconceito lingüístico” é um termo muito usado em certos círculos de estudo, tendo servido inclusive como título para um livro de Marcos Bagno. Ele existe, mas creio que formas como “os livro” devem ser evitadas não simplesmente para fugir dele, mas porque a língua é um fenômeno extremamente complexo, sujeito a diversos contextos de uso e variações que podem, às vezes, caminhar para graus diferentes de incomunicabilidade. Para que haja linguagem, algum padrão (ou norma) tem de haver.
Um tesouro das formas mais aceitas pela comunidade de falantes (ou escreventes) é importante para lutar contra essa entropia. Se assim não fosse, no limite, eu poderia falar “pau” para “pedra” e você “pedra” para “água”, impedindo qualquer forma de comunicação. O tesouro, No caso, não é só de vocábulos, mas de regras sintáticas, morfológicas etc. O uso pode acrescentar ou tirar-lhe dobrões, bem como mudar o valor das moedas, alterando o conjunto ao longo do tempo, mas não se trata de um processo fácil. Qualquer uso individual da língua precisa ser confrontado com uma norma ou amparado nela – seja a popular ou a culta - para ultrapassar os limites de um idioleto.
Você pode falar de um jeito ou de outro. Mas um é deles é dominante, não num sentido político ou social, ou mesmo estatístico (“há mais pessoas que falam assim ou assado”), mas quase darwiniano, como uma forma que vai ficar, que vai se sobrepor às outras. Nesse aspecto, por razões óbvias, os padrões escritos ainda são mais resistentes, tendem a prevalecer. As normas gramaticais ensinadas na escola (inclusive pelo livro em questão) têm por base a língua escrita, ou seja, tendem a serem as dominantes, num jogo em que, provavelmente, a sintaxe tende a ser mais resistente a mudanças, enquanto o vocabulário tende a enriquecer-se com a contribuição de erros, palavras estrangeiras e invenções as mais diversas.
Aprender e entender novas formas de comunicação é de suma importância. Como Wisnick frisa muito bem em seu artigo, “Dona Norma”, não como o simples domínio de mais uma variedade lingüística a ser usada para evitar o preconceito, “para usar diante de autoridades ou para preencher requerimentos”, mas como um exercício de pensamento, de lógica. Falar ou escrever de um jeito ou de outro não pode ser fruto da ignorância, mas uma opção decorrente do conhecimento. Depois que se sabe que o “certo” é de um jeito, está-se autorizado a “errar” expressivamente, como o fazem os poetas.
Discordo parcialmente de Caetano Veloso quando diz, referindo-se ao caso em questão, que “não entendo que se queira ensinar lingüística ou sociologia aos alunos de alfabetização”. Realmente quem se alfabetiza precisa de regras bem claras. Mas o livro em questão é para jovens e adultos! Não são alunos de alfabetização, Caetano! Ou vamos abdicar de lhes ensinar também filosofia e dar-lhes apenas ordem unida? Um, dois, um, dois!
Em resumo, a imprensa, de modo geral, errou ao atribuir ao livro de Heloísa Ramos algo que ele não faz, ou seja, que ensinaria algo “errado” aos pobres alunos. Pelo que vi, o livro ensina certo e ainda procura trazer algumas tinturas de lingüística, para além de uma gramática meramente prescritiva. Peca talvez por certa ingenuidade, ao resumir as escolhas lingüísticas a uma questão de se evitar ou não o preconceito lingüístico – o que é abordado, de formas diferentes pelos mencionados textos de Possenti , Souza Martins e Wisnick. Mas, se em textos especializados de lingüística ou qualquer outro ramo do conhecimento, sempre há idéias que precisam ser mais desenvolvidas, gerando dúvidas e debates, o que se dizer de um manual didático, de um apressado artigo de jornal ou da postagem de um blogueiro qualquer? Preferiríamos que aos alunos de uma faixa etária mais elevada fossem passadas meras prescrições, sem oportunidade de discussão ou de exercício do pensamento?
A partir daí, construíram-se diversos julgamentos apressados. “Preconceito lingüístico” virou “preconceito de classe”, apesar de não haver no texto em questão nada que justifique esse salto ilógico (não sei no resto do livro). Daí para se falar de “preguiça intelectual dos professores”, de um lado, ou de um suposto projeto educacional destinado a arrasar as bases da língua portuguesa, de outro, foi um passo. O governo estaria levando o modo de falar do Lula (que, como todos sabem, é repleto de uma ignorância autossuficiente) a nossos infantes! Preconceitos lingüísticos, de classe e políticos se manifestaram livremente, dando forma a teorias conspiratórias as mais diversas.
Minhas filhas estudam num colégio particular de classe média de Brasília. E, no entanto, elas tiveram acesso, de forma talvez um pouco diferente, à mesma abordagem lingüística que há no livro. Seria o governo Lula tão poderoso a ponto de disseminar seus tentáculos dessa forma? Seriam todos os professores preguiçosos, dispostos a aceitar todos os erros para não se verem obrigados a corrigir provas?
Essa superficialidade e rapidez nos julgamentos, esses tribunais públicos instituídos para condenar a partir de versões e de leituras fragmentárias e apressadas, infelizmente, são mais comuns do que pensamos – até mesmo entre os mais inteligentes, capacitados, informados. O caso da Escola Base, guardadas as devidas proporções, parece não ter ensinado muito... E isso é fruto de uma encadear de preconceitos, inclusive entre as elites bem pensantes.
Não li o livro, não conheço os autores, não tenho assim como julgar se a ingenuidade que aqui se mencionou é fruto natural de um texto sem grandes arroubos teóricos, ou se decorre de uma crença politicamente correta. Mas, provavelmente, muitos leram o caso dessa forma. O discurso de que todas as formas lingüísticas são igualmente válidas – certamente ingênuo - é politicamente correto. E, como observou Marcelo Coelho recentemente em artigo na Folha de S. Paulo, ser politicamente correto começa a ser out (não é isso exatamente o que ele diz, mas o sentido é mais ou menos esse). O in, o bem pensante, é ser politicamente incorreto. Rótulos simplificando o debate, cristalizando opiniões, impedindo um diálogo mais profícuo.
E la nave va... Mas sou otimista: preconceitos para lá, preconceitos para cá, enquanto houver esse espaço para a discussão, a sociedade e a cultura só têm a ganhar.

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