terça-feira, 8 de setembro de 2009

Las Meninas, do entre ao depois



Las meninas, de Velázquez, é uma daquelas telas que entraram para o inconsciente coletivo. Muito já se escreveu sobre sua técnica apurada, que levou para um espaço de grandes dimensões um tipo de construção pictórica a óleo comum apenas em quadros bem menores, numa demonstração inquestionável da maestria do artista. Os desafios colocados pela obra no que se refere à questão da representação e da subjetividade renderam páginas e páginas. E, como não poderia deixar de ser, ao longo desses últimos séculos, Las meninas deu margem a inúmeras cópias, paródias e homenagens que também são um atestado de sua grandeza e capacidade de instigar.

Há alguns meses, num giro de ônibus por Madrid, encontrei uma dessas muitas releituras do quadro, que guardei dentro de um livro, como marcador improvisado, para pensar sobre ela posteriormente. Trata-se de uma peça publicitária de El Corte Inglés, loja de departamentos muito popular na Espanha, que reproduzo neste espaço.


Nesta peça, o ambiente cortês do século XVII rende uma espécie de fashion remake, em que o sóbrio pintor se transmuta num modelo que posa como fotógrafo de moda, cercado por beldades e objetos que buscam reproduzir a composição original de Velázquez.

Muito já se ressaltou a qualidade “quase” fotográfica do quadro em comento, o que certamente contribui para a facilidade de recriá-lo numa propaganda de moda. Todavia, olhe-se bem para Las Meninas.

É óbvio que a obra não se quer um instantâneo. Como que postado diante de um espelho, o pintor não se flagrou (ou se deixou flagrar por um outro eu, o pintor imaginário que o olha) com o pincel sobre a tela, mas em repouso, entre ela e a palheta. O quadro não pretende, desse modo, propor-se como um recorte de um momento singular da realidade, mas como representação de uma cena ideal entre as pinceladas que o informam.
Uma pintura não pode corresponder, a não ser imaginariamente, à captura de um instante único, ainda que busque, enganosamente, representá-lo. Forma-se a partir do acúmulo de gestos e camadas – e a obra-prima de Velázquez não escamoteia isso. Um quadro é a soma de vários momentos a constituirem um outro momento, imaginário. Um auto-retrato não se pinta ao espelho, mas a partir de muitas visadas que se dão a ele, é uma soma de resíduos que não correspondem a nenhum momento singular, mas apenas a algo que está entre a imaginação do pintor e o quadro. A própria memória é um acúmulo de camadas, por mais que se engane sobre isso, não pode se referir a um momento singular. Dito de outra forma, o sujeito que olha a tela enquanto a compõe não é o mesmo que olha o mundo –e nenhum dos dois corresponde àquele que move o pincel.

O auto-retrato fotográfico, porém, pelo menos em tese, de modo geral, procura capturar o momento mágico do clique, ainda que a imagem a ser aprisionada procure transcender esse instante, representando mais do que ele, fazendo com que o registro quase instantâneo seja signo de uma história maior - e ainda que qualquer instantâneo, na verdade, corresponda ao intervalo de tempo que a câmara gastou para capturar a luz e não a um fantasioso instante único.

Olhe-se, todavia, para a propaganda de El Corte Inglés. O fotógrafo também está em repouso, com a câmara entre as mãos. Não é alguém que se fotografa ao espelho. A fotografia aqui posa de pintura. É evidente que o "verdadeiro" fotógrafo também está fora do enquadramento, como o pintor imaginário que olha o Veslázquez de tinta no Las Meninas original. Não se trata de recorte de um movimento, mas, claramente, de uma pose - também como naquele caso. Mas o que era provocação em Velázquez parece aqui mais distração.

Olhe-se mais uma vez. No lugar do pincel, há a câmara, igualada ao instrumento que escreve na tela no caso de Las meninas. Mas no que a tela se transformou aqui? Não num suporte de papel como poderia desejar um olhar mais apressado, mas num refletor, como que a sugerir que o suporte da fotografia é a própria luz. Photo graphein, no caso, mais que escrever com a luz, parece ser escrever na luz. Quase certamente o autor da campanha não pensou nisso. Mas, no caso, manifesta-se uma espécie de inconsciente técnico. O que se quis propor como representação de uma pintura revela-se, afinal, como uma visão da fotografia.

Não seria, nesse sentido, essa peça mais uma manifestação do antigo sonho indicial da fotografia, da visão dela como um recorte do mundo pela luz e na luz – fotografia como um pedaço de realidade a ser colado depois no papel ou no ecrã?

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