segunda-feira, 14 de setembro de 2009

O tempo comunicado

Salvador Dali: A persistência da memória


Ontem à noite tive de acertar as horas do gravador de DVD que tenho ligado a uma TV. Olhei para o relógio sobre a estante e fiquei em dúvida se ele estava correto. Lembrei-me, então, de consultar o celular, que é atualizado automaticamente pela própria rede. Um modo bem prático de resolver o problema, pois era alta a probabilidade de correspondência entre o horário do provedor do cabo e o do telefone móvel.

Quando criança, em Leme, no interior de São Paulo, lembro que minha mãe acertava os relógios de casa por meio da rádio Cultura AM. Independentemente disso, sabíamos quando era meio-dia ou dezoito horas (falávamos seis da tarde) porque o apito das fábricas ecoava, marcando o almoço e o término da jornada de trabalho.Toda vez que ouço “Três apitos”, do Noel Rosa, esses outros de minha infância são os que soam em meu coração. Também às dezoito, um locutor de voz empostada dava início à Ave Maria, que minha mãe ouvia de vez em quando. Nessas ocasiões, às vezes, ela evocava o modo como conhecia as horas em sua infância e juventude passadas em São João Del Rei, pelo badalar dos sinos das muitas igrejas que fazem parte do encanto daquela velha cidade mineira.

Interessante como essa forma de capturar o tempo (ou de sermos capturados por ele) foi mudando na medida em que o dito cujo passou. Mergulhando ainda mais no passado, agora não em memórias próprias, mas naquelas dos livros, é possível traçar um arco imaginário que vai do tempo medido pelas estações do ano e pelos ciclos do dia e da noite, passa por ampulhetas e relógios de sol arcaicos, pelos grandes marcadores de tempo mecânicos e pelos “cebolões” de antigamente, até chegar nos atuais gadgets eletrônicos que, de modo quase onipresente, pontuam toda nossa vida.

Quando o homem se aburguesou, mudando do campo para a cidade, os tempos mais largos da natureza passaram a ser insuficientes para pautar o andamento do dia, exigindo medições mais amiudadas. As horas canônicas corporificadas nos sinos das igrejas e depois aquelas que podiam ser lidas, em alguns casos, nos relógios de suas torres passaram a integrar o cotidiano.

Na medida em que mudavam os marcadores de tempo, que migravam dos sinais da natureza para instrumentos maquínicos cada vez mais elaborados, foi mudando também a forma de sincronizá-los entre as várias aldeias e cidades nas quais se instalavam. As manchas geográficas que correspondiam a uma mesma medição de tempo foram se espalhando cada vez mais. Mas o atrito era o grande inimigo de um tempo único: ainda que se acertassem de uma única vez dois relógios, se um deles fosse levado para outra localidade, de modo que não se pudesse sincronizá-los ao longo dos dias, depois de algum tempo estariam marcando horas diferentes. Assim, de início, isso que chamei agora há pouco de “mancha” podia cobrir uma área geográfica muito restrita.

A chegada do telégrafo e das vias férreas é que mudou isso. Era preciso coordenar a operação dos trens em diversas localidades, e a informação sobre as horas podia agora ser transmitida ao longo de toda uma rede física por impulsos elétricos. Assim, os principais marcadores de tempo das cidades passaram a ser antes os relógios das estações ferroviárias que os das igrejas, em um mais um passo para a laicização do mundo, com uma segurança maior de que todos eles estivessem apontando a mesma informação. Depois, vieram o rádio, a TV, a Internet, a telefonia celular, imergindo-nos cada vez mais num tempo que não é da vida, mas das máquinas....

Sem que percebêssemos, o tempo virou uma mensagem como outra qualquer, um “conteúdo” a ser compartilhado, cada vez mais regrado, cada vez mais distante dos ciclos e fluxos da natureza. Uma mensagem cada vez mais imperativa, um padrão cada vez mais preciso e uniforme. Se antes era um conjunto de índices do mundo, hoje é majoritariamente o brilho de numerais em telas plásticas, a refletirem não o nosso ritmo ou o das coisas a nosso redor, mas o de uma cultura casa vez mais medida. Como os de meu celular...


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