terça-feira, 31 de março de 2009

Aniki-Bóbó



Neste final de semana, assisti a uma pequena preciosidade do cinema: Aniki-Bóbó, de Manoel de Oliveira. Eu ía escrever do “cinema português”, mas percebi que assim restringiria a apreciação de uma obra que não merece ser aprisionada entre as fronteiras de um adjetivo nacional.

Neste filme de 1942, sua primeira obra de ficção, o poeta-cineasta ainda não era esse que conhecemos, o realizador de O Quinto Império, Um filme falado ou O Princípio da Incerteza. Há um lirismo quase piegas em alguns momentos, uma ação mais marcada do que em seus filmes posteriores. Muitos poderão achá-lo menos chato. A música interfere na narrativa de um jeito que depois não faria mais parte da sintaxe desse criador, o único que hoje sobrevive desde o cinema mudo. Mas, de qualquer modo, é Manoel de Oliveira que está ali inteiro, na capacidade de capturar poeticamente fragmentos de uma realidade maior do que qualquer câmera, reconstruindo-a por meio de um olhar que é, ao mesmo tempo, o de um velho e de uma criança.

É quase um milagre assistir a esse filme fora de uma mostra qualquer. Manoel de Oliveira é uma raridade em nossas locadoras, quase ninguém o conhece no Brasil, esse país tão próximo e tão distante de Portugal. Naquele país mesmo, quem o conhecerá? Essa dificuldade fica ainda maior no caso de um filme antigo, preto e branco, difícil de encontrar até mesmo em Lisboa. Vi-o com imagens um pouco oscilantes e legenda em italiano que, às vezes, ajudava a entender as palavras dessa difícil língua portuguesa do além-mar, diluídas no som ruim de uma cópia colhida na Internet, ripada de uma transmissão da RAI por algum maluco benfeitor.

Quase caí na tentação de dizer que Aniki-Bóbó é um filme sobre crianças. Mas é um filme sobre gente, sobre seres humanos que estão sempre em formação. Uma história sobre dúvidas éticas. Quem rouba é capaz de matar? Matar é o desejo, ainda que abrupto e passageiro, de fazê-lo, ou o ato em si? Nele o deslinde de um crime que não era crime até pode trazer o apaziguamento final, mas é impossível ao espectador atento esquecer que, por um momento, uma mão se ergueu com raiva.

A brincadeira de polícia e ladrão, que lhe dá o título, ganha conotações épicas, na medida em que a película trata dessa pequena grande luta do homem consigo mesmo. É um épico das pequenas coisas da vida, mas isso não o faz menor. Na tela, crianças amam, traem, mentem, roubam, ficam em dúvida, sofrem, tornam-se grandes em sua pequenez. Assim como no mundo o fazem os homens, crianças sempre, na medida em que estão continuamente a aprender e a desaprender sobre si mesmos.


Em Aniki-Bóbó nada é firme, porque tudo é humano. O menino acha roubar feio, mas rouba para conquistar a menina que, se assim não fosse, não lhe daria atenção. O guarda é uma quase alegoria da punição, uma encarnação da consciência pesada, mas tem também o olhar de um pai compreensivo. O dono do armarinho, de ogro, comerciante sem coração, transforma-se em quase santo, apenas para voltar depois a uma condição muita humana. E assim por diante.

Até o que filme possa ter de precário - as interpretações de alguns atores, algumas imagens surradas - de modo intencional ou não, acaba por contribuir com o desenho ambíguo que ele traça.

Aniki-Bóbó, desse modo, transforma-se numa história de formação, de descoberta, mas não apenas da formação e da descoberta que fazem parte da caminhada da criança rumo ao adulto. O jogo nele é bem mais complexo, mais sutil - encena no fundo essa dificuldade que é ser homem, mulher.

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