domingo, 22 de março de 2009

A volta dos regionalismos 2


Mas, retomando o último post, é bom lembrar um sentido em que talvez seja possível falar hoje de “região” ou “local”, sem preconceitos e de forma a categorizar uma discussão. Como dizia Sócrates, defina seus termos, que então conversamos...

Voltemos, para isso, à resenha de Vivien Lando mencionada no início da postagem anterior, a qual, ao se referir a Galiléia, dizia que o romance “(...) felizmente, passa longe do new regionalismo que tentam lhe atribuir: se finca no presente e permanece atento a uma realidade na qual, até segunda ordem, a globalização é soberana.”

Admito que ainda não havia lido o termo “new regionalismo”, ou pelo menos lhe prestado a devida atenção. Talvez já venha tendo um uso mais largo e apenas a minha ignorância não o percebeu. New regionalism (ou a sua tradução “novo regionalismo”, quase sempre na forma plural), por sua vez, é corrente, para se referir a fenômenos complementares ou contrários à globalização e que marcam esta virada de século. A expressão lembra que vivemos num mundo em que, se as fronteiras nacionais, por um lado, parecem se erodir, de outro, explode em movimentos locais de auto-afirmação.

Nesse contexto, a idéia de “região” ganha novas roupagens, cada vez mais caracterizada como um construto simbólico e social, dominado por imagens subjetivas, ainda que o que se encontre em jogo possa ser quase sempre o econômico.

A resenha de Vivien Lando, de forma inteligente, utiliza de modo negativo a expressão linguisticamente híbrida “new regionalismo”. Todavia, refletindo livremente sobre o termo, não há como negar que se trata de uma expressão interessante. Na união de um adjetivo inglês a um substantivo português, como que se corporifica o fenômeno que se pode observar numa dada região modificada pelos efeitos da chamada globalização.

Isso me lembrou artigo de Priscila Ferreira Perazzo e Môica Pegurer Caprino, lido há algum tempo no livro Comunicação e inovação - reflexões contemporâneas. Discutem-se ali as possibilidades de convivência ou interface entre o global e o local (ou regional) por meio da apropriação das informações globalizadas.

Primeiro, destaca-se o aspecto conflituoso dessa realidade, em que se chocam tradições contra as informações novas que chegam pelas várias mídias. As autoras, citando Martin-Barbero, lembram que o próprio processo de globalização acarreta um sentimento de deslocamento que pode reforçar o "local" e até mesmo promover a sua revalorização como “ hábito onde se resiste (e se complementa) a globalização, sua auto-revalorização como direito à autogestão e à memória própria, ambos ligados à capacidade de construir relatos e imagens de identidade”.

Eis aí um espaço de embate simbólico em que certamente a literatura tem muito a dizer, mergulhando suas mãos cheias de tinta na terra - seja a dos Pampas, a do sertão de Pernambuco, a das margens do Amazonas, a da Marginal do Tietê ou a da Praça dos Três Poderes.

Eis um sentido provisório, precário, para “região” e “regionalismo”, que pode englobar narrativas sobre Manaus, Curitiba, Manhattan, Oropa, França e Bahia, cada uma com suas vozes e cantos particulares, no que elas possam ter de contribuição para a diversidade cultural e a constituição de uma memória coletiva que não exclua o outro, mas coopere com um repositório geral de experiências múltiplas.

Ou seja, para que a memória seja de todos, ela deve alimentar-se das lembranças de muitos. O universal somente pode ser gerado por uma travessia do particular.

"Regionalismo" ou "localismo" ganham, assim, uma conotação bem particular, cujo uso crítico pode ser bastante legítimo nestes tempos globalizados, em que importa buscar aqueles sinais particulares que impedem todos de diluir-se na mesmice.
Ulisses também se lançou ao mundo, como o homem contemporâneo, mas soube amarrar-se a um mastro quando necessário e pôde ser reconhecido por uma cicatriz e pelo conhecimento específico sobre o tálamo, marcas de sua Ítaca, de sua vivência num canto específico daquele mesmo mundo em que tanto navegou.
Os cheiros e sons de Manaus ou de São Paulo, índices recuperados literariamente por alguns de nossos escritores, podem ter essa função de amarração simbólica que impede o homem de se perder ou de não ser reconhecido pelos seus pares.
Nesse sentido, todos podemos ser regionalistas - como Woody Allen ou Thomas Mann, por que não?

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